Primeiro álbum depois de uma década refaz conexão com o rock dos anos 1970
RIO - Ex-Lobão. Ex-cantor. Cantor de uma música só. Estes foram alguns dos epítetos que João Luiz Woerdenbag Filho, 58, viu associados a sua pessoa nos últimos anos, ao longo dos quais passou a dividir a atividade musical com a de bem-sucedido escritor de livros (a autobiografia “Lobão — 50 anos a mil”, de 2010, vendeu 80 mil cópias, e o livro de ensaios “Manifesto do Nada na Terra do Nunca”, de 2013, 50 mil). Ataques ao establishment da música brasileira, ao PT e à presidente Dilma Rousseff o afastaram de muitos de seus colegas, mas o aproximaram de expoentes de um novo conservadorismo político. No meio do turbilhão de um país “entregue a párias intelectuais”, ele agora chega pronto para a briga com “O rigor e a misericórdia”, seu primeiro disco de inéditas em dez anos, que tem lançamento marcado para o mês que vem.
— Eu não me defendo com o meu discurso, mas com a minha obra, com a minha excelência — diz ele, após a noite de autógrafos do seu mais novo livro, “Em busca do rigor e da misericórdia: reflexões de um ermitão urbano” (editora Record), no qual relatou o processo de composição desse disco.
FEITO EM CASA
Realizado graças a um financiamento coletivo (que recentemente recebeu o prêmio “Criatividade em crowdfunding” do Digital Music Experience), o novo álbum foi gravado sozinho, em casa, por Lobão, que cantou, tocou todos os instrumentos e ainda pesquisou todas as sonoridades.
— Esse é o disco em que eu me reconcilio com a minha verdadeira formação, os anos 1970. E principalmente com o ano de 1971 — conta ele, que reouviu os álbuns de Yes, Led Zeppelin, Humble Pie, Deep Purple e Grand Funk Railroad daquele ano antes de começar a gravar. — Até o meu último disco (de inéditas, “Canções dentro da noite escura”), eu estava muito ligado nos últimos trends, Radiohead, música eletrônica. Quando veio o punk, todo mundo enterrou os anos 1970. Hoje, só quem tem uma pálida influência sobre mim dos anos 1980 é o Elvis Costello.
Para Lobão, “todo roqueiro é conservador”.
— Você quer o som de válvula, você quer aquela guitarra de 1954, é a nostalgia da modernidade da qual eu tenho falado há um tempo. O que aconteceu na nossa época foi que, quanto melhor é o som digital, mais parecido ele é com o analógico. É uma metáfora do conservadorismo, é preciso reter valores para evoluir — elucubra. — Você vê, os países mais loucos, mais de vanguarda, são todos monarquistas. Na Inglaterra tem os Beatles, tem o Radiohead, mesmo que eles sejam contra aquilo. A vanguarda brasileira ficou parada na estética modernista de 1922. Você tem o cabelo do Arnaldo Antunes, a Adriana Varejão, os caras enfiando o dedo no cu. É tão velho você querer fazer suruba nos anos 2015!
“O rigor e a misericórdia” tem apenas quatro pessoas em sua ficha técnica: Lobão, Regina Lopes (mulher do músico, que fez a produção executiva), João Puig (sobrinho de Regina, que fez a capa e o solo de guitarra de “A esperança é a praia de um outro mar”) e Giovani Oliveira, técnico de informática que chegou à casa de Lobão para instalar a placa de som no seu computador e acabou virando técnico de gravação, além de cuidar da masterização caseira das músicas (“e está mais legal do que se tivesse sido em Abbey Road”, diz).
Quer deixar Lobão mordido, é só dizer que “O rigor e a misericórdia” é um disco político.
— Ele não é panfletário ou de protesto. É um disco de arte, rigoroso, que eu não queria que ficasse datado. Tem duas músicas que falam especificamente sobre política (“A marcha dos infames” e “A posse dos impostores”), o resto é só filosofia, sobre o universo — assegura ele, que refletiu sobre a morte do pai em “Ação fantasmagórica” e a da cunhada em “A esperança é a praia de um outro mar”. — Não sou ativista, sou só um cidadão descontente. As pessoas esquecem que eu falava mal do Sarney (“O eleito”), do Collor (“Presidente mauricinho”), eu nunca deixei de ser essa pessoa atuante, não tive um surto e virei militante. O papel mais adequado do artista é ser de oposição.
Depois de disparar contra velhos e novos desafetos da MPB nas páginas de “Em busca do rigor e da misericórdia” (Caetano, Gil, Chico, o guitarrista dos Titãs e escritor Tony Bellotto e empresária de Caetano, Paula Lavigne, por sua atuação com o grupo Procure Saber), Lobão diz que seus ídolos da música brasileira são todos “dos 1950 para lá”: o violonista Garoto e os cantores Altemar Dutra e Nelson Gonçalves. Do rock, ele só livra a cara do Cachorro Grande (“que é uma banda excepcional, mas falta muito para ter o pau na mesa”) e Roger, do Ultraje a Rigor, com quem partilha a visão conservadora na política. — Estou doido para ele voltar a escrever e fazer uma parceria comigo, o Roger é o nosso Adoniran Barbosa.
O escritor e o produtor de discos convivem em Lobão numa espécie de “simbiose e sinergia”, o sucesso de um impulsionando o outro.
— A partir do momento em que comecei a escrever livros, melhorei como pessoa, como letrista. Sou um homem maduro hoje em dia, completamente desarmado de maneirismos. Não sou mais aquele Lobão muito louco. Eu não era aquilo. Hoje eu estou com senso de proporção, de respiração, de variedade... Transformo a raiva em algo positivo. A raiva é bem-vinda na medida em que não me destrói — discursa ele, que continua a correr pelo Brasil com seu espetáculo acústico, apesar das dificuldades de conseguir datas em algumas cidades. — Todo mundo vai com os livros aos meus shows. Não tem relação mais íntima de um artista brasileiro com seu público do que a minha. O livro não me deixa calar.
Entre os planos mais imediatos de Lobão estão os de fazer dois crowdfundings: um para viabilizar a edição dupla em vinil de “O rigor e a misericórdia” (com a inclusão de “O que é a solidão em sermos nós?”, que entra no CD em uma versão em espanhol) e outro para garantir a realização de uma turnê do novo disco. Mas, apesar do triunfo pessoal de ter feito o primeiro disco em que foi totalmente fiel a si mesmo, as suas perspectivas não são as mais animadoras.
— Se eu pudesse, eu teria ido para fora do Brasil, mas o meu nicho de trabalho e meu público estão todos aqui — desabafa. — Recebo ameaças de morte, tenho que matar seis leões por dia para ter um show... Seria muito melhor morar no Uruguai ou em Portugal, em qualquer outro lugar - Chora, Lobão!