Vocalista do Capital Inicial há quase quatro décadas revela decepções com PT, Lula e Sergio Moro — a quem conheceu num show. Inspirado em Renato Russo, prega independência por música combativa
Rumo às quatro décadas de
carreira, Dinho Ouro Preto, 54, confessa que demorou a acreditar que poderia
viver da música. O vocalista do Capital Inicial, que emergiu na cena do
rock no início dos anos 80, a era de ouro das bandas de
Brasília, imaginava que, cedo ou tarde, seguiria o caminho traçado pela
família. Tataraneto do Visconde de Ouro Preto, neto de ex-presidente da
Academia Brasileira de Letras e filho de diplomata, renunciou à veia política
para se tornar um dos roqueiros mais longevos do Brasil. Atribui à sorte, aliada ao estilo de vida saudável que
adotou depois de parar de beber e usar drogas, a aparência jovial que disfarça sua idade. “Não há nada que
me distinga da massa.”
Em seu estúdio, montado nos fundos de casa na zona oeste
de São Paulo, conserva relíquias que entregam a rodagem da banda, como o primeiro álbum de vinil, gravado em 1986, e o disco de ouro
do Acústico MTV, que vendeu mais de 2 milhões de cópias. É
lá onde tem passado os dias preparando o novo projeto solo, um tributo ao rock
brasileiro com versões de clássicos nacionais. Os shows com o Capital ainda
ocupam parte da agenda, mas num ritmo bem menos frenético que a época de turnês
incessantes pela estrada. Na entrevista ao EL PAÍS, Dinho defende que o rock
precisa recuperar a verve combativa, crítica ao poder. Ele ainda fala sobre o
encontro com o “fã” Sérgio Moro, diverge da postura do PT pós-eleição e diz
respeitar os roqueiros que tomam partido. “É tolice medir o talento de um
artista por suas posições políticas.”
Pergunta. O
novo disco (Sonora) remete ao ‘Capital raiz’, mas sem abdicar dos
hits. Vocês buscam o equilíbrio a partir do cultivo à essência?
Resposta. Fazer
essas duas coisas é tirar o coelho da cartola. Toda banda tem sua
personalidade. Respeitamos nossas origens, sem perder de vista o espaço para
experimentar novas sonoridades, timbres e arranjos. Quem ouve o disco não diz
que o Capital está irreconhecível, mas percebe que estamos diferentes. A melhor
coisa do Sonora é ser surpreendente.
P. As
parcerias com bandas mais jovens, como Far From Alaska, Fresno e Scalene,
servem para estabelecer a conexão com o presente?
R. Como
vesti a camisa por toda minha vida, hoje começo a me preocupar com o futuro do
rock nacional. Quero passar a bandeira para a geração seguinte. Meu sonho é
montar um festival itinerante. Seria um Lollapalooza brasileiro que viajaria por várias cidades.
Vejo muito talento na garotada. Há várias bandas que me chamam a atenção. No entanto,
falta ao rock um espírito maior de comunidade. Vemos isso com mais força no samba e na música sertaneja. Muitas vezes,
o rock se pauta pela rivalidade.
P. O
rock perdeu força diante da concorrência com outros gêneros?
R. Quando
nós surgimos, havia ainda menos espaço para o rock. Tocávamos para 50 pessoas
em Brasília. Pode ser uma questão de sazonalidade. Mas também a falta de um
catalisador, um sujeito ou uma banda que consiga pegar o zeitgeist dessa época e verbalizar o que todos
estão sentindo. O que houve, por exemplo, com Renato Russo e Cazuza.
P. Como
fazer um rock popular sem desagradar aos fãs mais puritanos?
R. O
Renato [Russo] me mostrou que é possível escrever boas letras em português para
o rock. Antigamente havia certo preconceito, achavam que só era viável em
inglês. Eu sempre tive na cabeça a necessidade de fazer um “rock popular brasileiro”. Queria que, quando as pessoas
falassem sobre a música popular brasileira, tivessem que falar também sobre
nós. O maior legado da nossa geração foi ter contribuído para popularizar o
rock no Brasil.
“Confrontar
o poder faz parte da essência do rock”
P. Naquela
época, já sonhava ter sucesso com a música?
R. Nunca
achei que eu fosse chegar aonde eu cheguei. Não tínhamos nenhuma pretensão
profissional com a banda. Eu levava como curtição da adolescência. Imaginava
que depois eu arrumaria um “emprego de verdade”. Sempre achei que o fim [do
Capital] era iminente. Foi só lá pelos 40 anos que eu percebi que viveria do
rock.
P. Qual
foi o ponto de virada para o Capital Inicial?
R. O Capital experimentou o fracasso depois do sucesso. Nos
separamos, mas soubemos aproveitar nossa segunda chance, aprendemos a lição.
Paradoxalmente, o fundo do poço nos fez bem. Depois que a banda voltou, a gente
não se deixou mais levar pelo entusiasmo dos bons momentos. É tudo efêmero. Eu
voltei determinado a não repetir os erros do começo de carreira.
P. Os
“primeiros erros”...
R. Exatamente. Essa música [Primeiros Erros],
inclusive, é simbólica para o Capital. Ela teve tanto impacto porque fala de
algo universal. Todo mundo gostaria de ter uma segunda chance para corrigir
seus erros. Eu olhei pra trás e decidi me tornar obcecado pelos detalhes, a ser
mais atencioso. A partir da reunião da banda, começamos a produzir um disco a
cada dois anos. Em nenhum momento ficamos presos ao passado. Nós valorizamos
nossa história, tocamos músicas antigas nos shows, mas estamos sempre de olho
no projeto seguinte, em busca de uma reinvenção constante. O Capital não vive
de nostalgia.
P. Em 2014, vocês lançaram o álbum Viva a Revolução, inspirados pelas Jornadas de Junho no ano anterior. Esperava que as
manifestações de rua ganhassem contornos tão políticos a ponto de servir como
termômetro da polarização no país?
R. Não
esperava. O que me seduzia naquelas primeiras manifestações é que elas pareciam
uma coisa meio anárquica, incendiária, contra tudo e contra todos. Aquilo me remeteu à época da
juventude. Eu fui pra Paulista protestar. Teve um momento em que alguém
levantou uma bandeira lá no meio e logo mandaram guardar. Não tinha liderança.
Até hoje ninguém entendeu direito o que foi aquele movimento. Tenho a impressão
de que o Brasil vive perenemente à iminência de uma explosão.
P. Sua
família sempre esteve envolvida com a política. Como foi crescer nesse ambiente
e experimentar a rebeldia da Turma da Colina, em Brasília?
R. Meu
pai abriu a embaixada brasileira em Angola. Pegou malária, escorbuto, viveu
Guerra Civil... Na volta, trouxe de recordação umas camisetas com foice e martelo do MPLA (Movimento Popular
de Libertação de Angola). Minha mãe tinha medo de eu ser preso por sair com
elas na rua. Eu fazia mais por provocação. Nossa geração sempre teve o ímpeto
de questionar o governo. Eu era criança nos anos de chumbo, pegamos a transição para a democracia. Nós
achávamos que a música que a gente fazia era profundamente subversiva.
P. Chegou
a se engajar em partidos?
R. Participei
de reuniões do movimento secundarista, muito ligado ao Partido Comunista. Mas
era de uma ortodoxia que me incomodava. Discussões em termos absolutos,
profundamente dogmáticas. Pessoas da minha idade que pareciam comungar de uma
certeza que até hoje eu não tenho. Vejo a dúvida como uma virtude, de aceitar o
diálogo e não ser o dono da verdade. Sempre me incomodou a falta de liberdade
de pensamento. Tem uma frase da música Baader-Meinhof Blues,
do Renato [Russo], que eu acho genial: “Pra seu governo, o meu estado é
independente”.
“Renato
Russo teria se oposto ao Bolsonaro, mas não se alinharia ao PT”
P. Como
Renato Russo enxergaria o momento do país se ainda estivesse vivo?
R. Ele
estaria bastante incomodado. Certamente teria se oposto ao Bolsonaro, mas não
se alinharia ao PT. Eu sempre o vi como uma liderança, um exemplo a ser
seguido. Acredito muito em independência intelectual. Foi isso que aprendi com o Renato.
Independência e disposição para o confronto ao poder. Não é papel do cidadão
bajular políticos. Nosso papel é cobrar dessas pessoas.
P. Você
fez campanha para algum candidato nas últimas eleições?
R. Eu
me considero progressista, de centro-esquerda, mas tenho dificuldade de me
associar incondicionalmente a programas de um partido. Sou independente. Já
votei no Lula, mas parei de votar depois do mensalão. Passei a votar na Marina Silva, cheguei a fazer campanha pra ela duas
vezes. Acredito na urgência da causa ambiental e concordo com as posições
econômicas dela. No segundo turno da última eleição, eu votei no Haddad. Achei
que ele estava propondo uma coalizão democrática, já que o extremista é o
Bolsonaro. Fui levado a acreditar que o Haddad tinha dado um passo
atrás no programa de governo para incluir em seu campo pessoas que
não fossem necessariamente petistas, como eu. Mas, depois de levantar a
bandeira da democracia, o PT entrou em contradição. Passaram a campanha inteira
falando de democracia e mandam a Gleisi [Hoffman] pra posse do Maduro? A Venezuela
vive uma ditadura. Se for uma ditadura de esquerda é aceitável? Eu me senti
enganado.
“Falta
ao rock um espírito maior de comunidade. Vemos isso com mais força no samba e
na música sertaneja”
P. Apesar
do apoio a Lula e Haddad, nunca se considerou petista?
R. Não
sou petista e tenho várias reservas ao partido, mas também sou contra a
demonização da obra do PT. A gestão Dilma foi um desastre, é verdade. Só que
não podemos ignorar que houve inclusão social nos governos petistas, um legado importante.
Para mim, o principal problema do país é a concentração de renda. A violência
deriva dessa chaga social brasileira. Mas outra coisa que me incomodava no PT
era o culto à personalidade, quase como uma seita. Algo típico de um
caudilhismo latino-americano, que vai de Perón [ex-presidente da Argentina] a
[Getúlio] Vargas, do Lula ao Bolsonaro, por incrível que pareça. Essa história de “mito”... Que porra é essa?
P. Um
contrassenso desses tempos de negação da política e, ao mesmo tempo, idolatria
a políticos...
R. Não
há nada mais latino-americano do que isso. Estamos sempre esperando um salvador
da pátria, uma pessoa iluminada. Confesso que eu também já me deixei carregar
por esse culto. Quando o Lula foi eleito, eu falei: “agora vai”. Acreditei
várias vezes, como na época que o Brasil se redemocratizou ou do Plano Real.
Quando era adolescente, achava que, na idade que tenho hoje, o país já teria
superado esses obstáculos.
P. Você
já puxou coro contra políticos como Lula, Dilma, Aécio e Temer em shows do
Capital, antes de tocar Que País é Esse.
Pretende manter o tom crítico ao Governo Bolsonaro?
R. Sem
dúvida. Discordo de muita coisa do Governo Bolsonaro, principalmente do núcleo ligado ao Olavo de
Carvalho. Estou de acordo com parte da agenda do Paulo Guedes [ministro da
Economia]. As contas precisam bater. Mas as reformas econômicas não são
suficientes para incluir as dezenas de milhões de excluídos. Em relação ao Sérgio Moro, eu o conheci. Ele foi a um show do
Capital em Curitiba, antes da condenação do Lula. Eu disse no palco que ele
estava presente e o lugar veio abaixo, todo mundo aplaudiu. Depois conversamos
no camarim. Eu via o trabalho dele na Lava Jato como apartidário. Tinha a
impressão de que estavam investigando geral, do Lula ao Beto Richa, passando
pela cúpula do MDB. Mas o Moro não deveria ter aceitado o cargo de ministro. Soou
como se ele tivesse uma agenda em comum com o Bolsonaro.
P. Nesse
cenário polarizado, fazer músicas com viés político representa um risco para o
artista?
R. Sim.
Abordamos temas políticos em nossos discos, mas, como nós não somos partidários
nem monotemáticos, temos liberdade para tocar em qualquer assunto nas músicas
[faz uma pausa]... Cara, eu tenho um histórico de incomodar a todos. Fui
bastante xingado nas redes sociais durante as eleições, por militantes de vários lados. Minha família e até o pessoal da
banda pediram pra eu parar de postar, porque viam as pessoas me xingando. Mas
eu não me intimido. Que xinguem! Tem gente que ouve as músicas do Capital e
votou no Bolsonaro. Porque a maioria das nossas mensagens poderia ser dirigida
a qualquer político, a qualquer partido. Confrontar o poder, seja quem for, faz
parte da essência do rock.
“O
hip hop faz o que o rock fazia nos anos 80 e 90: bate de frente com o poder”
P. O
rock ainda pode ser considerado revolucionário?
R. Hoje,
o pessoal do hip hop é mais incisivo do que nós. Eles fazem o que rock fazia
nos anos 80 e 90: batem de frente com o poder. A polarização do país chegou ao
rock. De um lado, temos artistas mais engajados à esquerda, como Leoni, Edgard
Scandurra e Tico Santa Cruz. Do outro, mais à direita, Lobão e Roger Moreira. O
rock passou a ser um espelho da sociedade brasileira. Nos anos 80, era
praticamente uma unanimidade que o problema do Brasil eram os militares. Depois, nos anos 90,
havia quase um consenso de que era preciso promover justiça social. O mundo
parecia mais simples no passado.
P. Há
espaço para posições conservadoras dentro do rock?
R. Entendo
que o rock precisa ser audaz e destemido, não pode ser submisso.
Por isso, eu não me submeto a um partido ou ideologia. Sou livre pra criticar
quem eu quiser. Mas eu acredito na democracia e levo isso ao pé da letra. Tenho
que aceitar a diversidade de opiniões. As pessoas vão pegar no pé do Chico Buarque por ser petista? Discordo de muita coisa
que ele diz. Para mim, por exemplo, Cuba e Venezuela são ditaduras. Mas ele continua sendo genial.
Justiça seja feita, também reconheço o valor do Roger [Moreira] e do Lobão,
mesmo discordando da opinião dos caras. É tolice medir o talento de um artista
por suas posições políticas.
Capital Inicial
surgiu após cisão do Aborto Elétrico, a primeira banda de Renato Russo. DIVULGAÇÃO
P. O
Capital pode ser tão longevo quanto Rolling Stones, Kiss e Iron Maiden?
R. A
parte mais difícil de uma banda é o entendimento entre quatro indivíduosque convivem há décadas.
Uma hora você quer matar os caras [risos]. As pessoas tendem a glamorizar essa
vida, mas o sacrifício é inerente à carreira. Perdi uma bela fase da infância
dos meus filhos. Agora o Capital já é uma banda veterana. Estamos na trincheira
pelo rock e não vamos desistir tão cedo.
P. Fãs
da banda brincam sobre sua aparência, dizem que você não envelhece. Existe algo
de rejuvenescedor na rotina de um roqueiro?
R. Estranho
isso, né? Acho que é sorte [risos]. Vou fazer 55 anos. Mas eu parei com
tudo. Parei de beber, fumar, usar drogas... E comecei a correr todos
os dias. Não há nada que me distinga da massa.