Rio, Junho, 1984.
Quatro da
manhã, cemitério do Caju... Madrugada fria e a gente não parava de
chorar...
Escondidos,
perambulando feito fantasmas, arrastando corrente, pelos cantos do
velório…
almas
penadas.
Àquela
hora, não havia mais ninguém na sala com o Júlio, exceto eu e Cazuza,
que, por
todos os
motivos do mundo, não conseguíamos parar de olhar para o caixão fechado,
nem parar de chorar, nem deixar de
ir ao banheiro cheirar mais, pra continuar chorando:
“Perder um cara como o Júlio é como uma
decapitação… A gente ficou órfão do nosso
irmão mais velho”, sussurrei para um
Cazuza igualmente desmoronado, que me respondia:
“Órfãos e fudidos, você quer dizer”, e
emendou: “Vão chupar a nossa carótida...”
Sim, essas visões sombrias já pairavam no
ar o tempo todo.
Não parávamos de imaginar as consequências
daquela perda. A minha desolação era
inédita; nunca estive me sentindo tão
dentro do fim, tão nada e com a alma sangrando.
Vomitava meus pavores:
“Agora estamos à deriva. A gente naufraga
aqui. Esse velório, esse cemitério, essa morte
é como se estivéssemos chegando nas portas
do inferno. A partir de agora, todas as nossas esperanças serão deixadas
do lado de fora. Todas as esperanças de conquistarmos a nossa
autonomia, a nossa estética. Perdemos o trem da história, Cazuza. Sem o
Júlio nós não temos mais uma turma; agora somos um monte de ninguéns!...
Chegou a hora dos nossos inimigos se apoderarem da cena pra formar
alianças, justamente com aqueles que mais
queríamos ver longe. É a hora do pastiche e
da indulgência… A hora do frenesi dos
mesmos cadáveres insepultos de sempre, sugando a juventude dos que nada
mais têm a oferecer, além do próprio sangue de barata. É a hora dos
come‑quieto nos fazerem de vilões. É a hora da morte da possibilidade da
transformação, da morte da
nossa ingênua esperança em querer mudar o mundo. É a hora da morte da
liberdade do delírio... O Universo não conspira mais a nosso favor. O
inferno é aqui e agora, e nossas esperanças ficaram num céu natimorto.”
Estava delirantemente transtornado pela
dor e vagamente anestesiado pela cocaína;
sem que necessariamente estivesse
inteiramente fora do meu juízo.
O Júlio era um homem‑arquivo, um poço das
mais variadas informações. Um ser de
uma inteligência prodigiosa, de grande
coragem e inspiração; um articulador.
Era um esteta, e perseguia obsessivamente a
novidade, digerindo tudo que estava ao
seu alcance, sem barreiras, sem dogmas.
Fora a sua alegria... O Júlio era um grande poeta, uma criatura
engraçadíssima, uma aventura ambulante, um sexista, um sátiro e, antes
de qualquer coisa, um amigo raro.
Com tudo isso passando pela cabeça,
naquele velório, suor e lágrimas se fundiam. O
silêncio se desfazia com o cantar dos
passarinhos, que despertavam com o dia a me causar calafrios. Na sala, o
caixão fechado invocava toda uma angústia da incapacidade em não poder
dar o último abraço, o último beijo. Daí pensei: “Cazuza, pensa bem: tá
todo mundo dormindo, a gente tá aqui sozinho, com ele...
Vamos sublimar a paradinha. Vamo esticar
duas carreironas em cima do caixão? Pelo menos essa kartirinha da Ordem
dos Músicos vai servir pra
alguma coisa. A gente não pode se negar a fazer isso, né?” Eu fungava,
apalpando freneticamente os bolsos.
“Vai ser nossa última homenagem... Não tem
ninguém olhando... Vamo nessa, rapá!”
“Lobãothinho”, Cazuza de vez em quando me
chamava assim, ciciando, “tá bom, vamos
nessa. Mas será que não vão pegar a gente
com o canudo no nariz?”
“Claro que não, bobo. Tá todo mundo
cansadão, dormindo pelos cantos. E se alguém
nos flagrar, vai pensar que tá tendo um
visual causado pela estafa e pelo sofrimento. Além
do mais, isso aqui é uma licença poética!”
Depois de algum tempo tremelicando, consegui tirar a tampa de Minalba
do bolso, cheia de cocaína, despejar no verso da kartira azul e pousa‑la em cima do caixão. Estiquei
diligentemente duas enormes lagartas que reluziam a brilhar naquela
insólita superfície — que naquele instante, em todo o seu conjunto, mais
parecia uma instalação de arte contemporânea —, e passei o canudo de
caneta Bic pro Cazuza:
“Vai nessa, meu irmão. Pensa que é pro
Júlio.” Ele me deu uma risada meio amarga,
meio úmida, deu uma cafungada forte e, sem
perder o fôlego, me passou o canudo secando a narina no antebraço,
dizendo baixinho:
“A gente é muito louco! A gente é
maluco...”
Pausa. Mais uma risadinha canalha e
emenda:
“Mas também, o que nos resta?!” Respirei
um pouco pra pegar um ar depois do catranco
e, me dirigindo a um Júlio que, nesse
exato momento, parecia descer das nuvens, todo
de branco, como sempre gostava de se
trajar, a nos abençoar, escancarando um sorriso de quem está pronto para
gritar para seus irmãozinhos
— “Aleluia, rapeisy!” —, contrito, lhe
prometi: “Meu amigo, você vai sempre estar
com a gente, você vai sempre estar vivendo
dentro da gente, pode crer!”
Recebemos um fluxo de energia poderoso.
Um momento ritual. A partir de então, a
minha vida se resumiria em antes e depois daquele instante. A morte do
Júlio Barroso foi um marco: existia o antes e o depois daquela perda.
Não só para mim, mas para toda a história.
E olhando pro Cazuza, inflado de amor,
arrematei:
“E tem outra, rapá, não vão derrubar a
gente assim tão mole, não! Vamos em frente, mesmo porque a morte do Júlio não vai
ser em vão. A nossa vida não pode ser em vão,
e, se nada pode deter uma pessoa feliz,
nada poderá nos deter, pois a nossa história vai ser cada vez mais...
cada vez mais...” Chorava copiosamente.
Diante daquele vazio, gaguejando
mentalmente, tentando pinçar na cabeça o que poderia ser “cada vez
mais”, arrematei:
“INTENSA!!!!” E não satisfeito, prossegui:
“e cada vez mais... DIVERTIDA!!!!” E concluí:
“A nossa onda de amor não há quem corte!!”
Chacoalhando de emoção, abracei com toda a
força o caixão.
Talvez tenha sido ali, naquele momento
surreal, que nasceu não só uma vontade, mas
um compromisso tácito entre meus amigos de
que, uma vez sobrevivendo, eu deveria contar toda a história. Uma saga à procura de um
lugar a que se pertencer… Eu precisava, através de um juramento, me
motivar o bastante para não ver nossos sonhos serem sepultados com meus
amigos.
Preparem‑se porque, a partir de agora, vou
contar uma história de amor louca, insólita,
humana, demasiadamente humana,
imprevisível, improvável, mas bem real: a história da
minha vida, que se mescla e se confunde
com a da minha geração, do nosso país e de nosso tempo. Não se trata de
uma simples narração de um passado longínquo, morto e enterrado, fruto
de um devaneio nostálgico. É uma história cheia de vida, de intensidade e
de revelações, que incide no presente e se projeta em direção ao
futuro.
Portanto, não se enganem: o melhor ainda
está por vir, pois essa promessa eu fiz aos
meus amigos, ao pé de suas lápides. E
tenham a certeza absoluta de que a cumprirei à risca.
Prólogo do livro "50 Anos a Mil",
de Lobão com Cláudio Tognolli