Ave Sangria por Caio Luiz
Como é possível uma banda fora do eixo Rio-São Paulo ter criado um mitológico disco cosmopolita e psicodélico em meio ao fechamento e repressão da ditadura militar em plena década de 1970?
“Geórgia, a carniceira dos pântanos frios das noites do Deus Satã / Jogando boliche com as cabeças das moças mortas de cio / No levantar das manhãs de abril”, este é o refrão de Geórgia, umas das músicas do disco “Ave Sangria” cujas letras costuram influências literárias de Rimbaud e Baudelaire com solução alquímica de fusão entre Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga com Beatles, Led Zeppelin e Rolling Stones.
Com a fragmentação de imagens e enxurrada de metáforas, a banda Ave Sangria se impregnou do recurso alegórico libertário e visceral para protestar contra a militarismo vigente no Brasil. Depois de 40 anos do lançamento do único e homônimo LP, quatro integrantes originais se reúnem para a reedição da obra em CD na segunda-feira (02/09) no Recife, PE. O “Perfumes e Baratchos” foi o último show ao vivo do grupo, em 28 e 29 de dezembro, de 1974. Ao longo de quase trinta anos, fitas cassete com cerca de oito músicas inéditas e mais todo o registro da apresentação estavam guardadas na casa do guitarrista Paulo Rafael e foram ressuscitadas pelo selo Ripohlandya.
Contexto
O final dos anos 1960 e a década seguinte foram laboratórios de lisergia musical no Brasil. Do nordeste do País pipocou uma vanguarda que logrou o feito de sintetizar o rock and roll psicodélico importado das nações anglo-saxônicas com densas influências de forró, baião, repente, xaxado e frevo. Gal Costa lançou bossas, MPB e tropicália alucinógena com os primeiros discos da carreira solo entre 1968 e 1970. “Paêbirú” é o raro LP de Zé Ramalho e Lula Cortês que teve grande parte da tiragem estragada por uma enchente em 1975. Em 1977, Alceu Valença vertia loucura do agreste com o álbum “Espelho Cristalino”.
No entanto, o esplendor auditivo originado daquele bolachão cangaceiro do autor de “La Belle de Jour” tem raízes em uma banda lendária de Pernambuco. Fundada em 1972, a Tamarineira Village começou com músicos de baile que estudaram violão nos bairros de Recife e foram se intrometendo no cenário musical até ganharem mais integrantes.
A primeira apresentação foi em 11 de novembro do mesmo ano em um feira da cidade. O título do conjunto veio do nome do bairro dos componentes, que também pertence a um tipo de árvore que dá frutos doces e azedos. Tamarineira era o nome de um sanatório que acabou virando sinônimo de casa de loucos na região e veio a calhar para o octeto. A segunda parte veio de Greenwich Village, bairro popular de Nova York de efervescência musical.
O nome reflete o gosto agridoce que as canções causam nos tímpanos, a insanidade proveniente da psicodelia, sensível na sonoridade e nas letras irônicas e macabras - compostas em maioria pelo jornalista, poeta e vocalista Marco Polo – com termos e traços culturais de Pernambuco. Mas o Trio Irakitan, grupo nascido nos anos 1950, em Natal, Rio Grande do Norte, excursionava por Recife e indicou o Tamarineira Village como investimento promissor para a gravadora Continental. A empresa sugeriu a mudança de nome. Marco Polo não aguentava mais explicar o porquê do batismo. Optou por algo ainda mais lúdico: Ave Sangria, que em 1974 lançou 12 faixas.
Capa original do disco feita por um dos integrantes da banda, pois a gravadora se recusou a pagar pela arte |
A música “Seu Waldir”, uma crítica ao machismo imperador no Nordeste, atingiu as rádios com tudo na época. Era apenas escracho. Na canção, uma pessoa se declara ao seu Waldir, mas como a música era cantada por um homem isto incomodou os machões e os militares. “Um cronista social se indignou com a música e fomos censurados e, assim, tiraram o disco das lojas e rádios”, contou Almir.
Não havia produtor, instrumentos próprios, nem incentivo. Ave Sangria começava a decolar, mas caiu do voo por causa do veto da ditadura que veio em agosto. Era, acima de tudo, uma banda independente que fazia tudo na mão. Ensaiavam oito horas por dia, de segunda a sexta-feira. Colavam os lambe-lambes dos shows. Brigavam com a polícia federal para liberarem os cartazes e as músicas.
Cansaram de tanto lutar e a banda acabou em 1975. Alguns músicos tinham mulheres grávidas e precisavam se sustentar. Quatro deles (Israel, na bateria, Ivinho, na guitarra, Paulo Rafael, no baixo, e Agrissio, na percussão) migraram para a banda do Alceu Valença e emprestaram muita da sonoridade do Sangria para o disco “Espelho Cristalino”.
“Vindo do meio da caatinga, entre as cabras e os mandacarus, como poderíamos imaginar que até hoje um só disco reverberaria nas gerações atuais?”, questiona com alegre espanto o vocalista Marco Polo. De acordo com Polo, atualmente editor de livros, naquela época havia três opções de atitude para a juventude. O conformismo, algo presente entre filhos de empresários e militares que apoiavam a direita. A luta clandestina da esquerda, que Polo considerava muito moralista e com estética quase reacionária ou contracultura, que pregava mudanças de comportamento.
“Com o movimento hippie ainda ecoando pelo mundo, com maio de 1968 repercutindo, escolhemos a terceira opção. Eu era contra os valores dominantes e cada música era um manifesto contra os costumes travestido de psicodelia”, descreveu Polo.
O que contribui para o status lendário e cosmopolita do disco é o seguinte: primeiro que o Nordeste já possui traços culturais fortíssimos em todas as esferas artísticas e isso é transferido para as manifestações naturalmente. Segundo: 1972 tinha um cenário experimental borbulhante em Recife. Várias bandas misturavam estilos e referências no período. Terceiro: toda esta cultura pungente e pulsante era reprimida pela ditadura. Aquilo era panela de pressão prestes a explodir.
E por último, o fator logístico e geográfico do porto de Recife que na década em questão era de extrema importância para a importação. Além de ser o ponto mais próximo entre os EUA, África e outros países, os jovens da cidade faziam amizades com os marinheiros nas zonas de prostituição e no cais. Os homens do mar por vezes vendiam os discos com os quais viajavam, faziam escambos com os pernambucanos ou doavam os bolachões para os parceiros.
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