"Na frente de 50 mil, Renato provocava ainda mais"
A poucos dias de completar 50 anos, Dado Villa-Lobos passa a vida a limpo em seu livro Memórias de um Legionário. Escrito a seis mãos - com o auxílio dos historiadores Felipe Demier e Romulo Mattos -, é livro para se ler de um fôlego só, especialmente se o leitor for fã da Legião Urbana ou se, no mínimo, tiver vivido aqueles loucos anos entre as décadas de 1980 e 90. Porque, mais do que o relato do ex-guitarrista da Legião Urbana, Memórias de um Legionário é o relato de uma geração que arrombou as portas da indústria fonográfica, deu um chega pra lá (momentâneo, claro) na aristocracia estabelecida da MPB e botou casas de show e estádios de cabeça pra baixo com multidões enlouquecidas de jovens. Testemunho de alguém que estava no olho desse furacão, o livro, na verdade, tem seu maior mérito no fato de ser o relato em primeira pessoa dos bastidores da Legião Urbana, detalhando os encontros que levaram à formação da banda, as primeiras apresentações, a chegada ao eixo Rio - SP, a contratação pela EMI, as gravações de todos os discos, o estouro, as turnês pelo país. Estão aqui também os detalhes do relacionamento interno da banda, sujeita aos altos e baixos emocionais de Renato Russo e até a alguns ataques de estrelismo do baterista Marcelo Bonfá. De quebra, a infância e adolescência deste filho de embaixador, que costumava roubar Mobiletes nas ruas de Paris.
Qual era sua intenção ao escrever suas memórias?
Era uma questão de juntar os cacos. Estou chegando aos 50 anos (no dia 29) e há uma série de questões em relação à Legião. O Renato se foi de forma trágica e repentina, a questão dos herdeiros meio confusa. O livro na verdade foi algo que eu percebi que poderia juntar os cacos, todos os fragmentos numa coisa só, e assim ter uma percepção mais exata do que de fato aconteceu e repercute até hoje. Foi uma experiência muito positiva. Gostei do resultado. É um documento com relatos que estendem por 30 anos, com uma contextualização histórica, social, política e cultural.
O livro meio que aclara coisas que na época ficaram meio obscuras, como a saída do (baixista) Negrete e o quebra-quebra no Estádio Mané Garrincha (em 1988). Dar sua versão desses episódios foi outra razão para o livro?
Acho que sim, tudo foi meio dentro de uma sincronicidade. Eu estava querendo me distanciar da história toda. Mas aí o herdeiro (Giuliano Manfredini, filho de Renato Russo) montou um site que estava transformando a história de forma stalinista, mexendo, tirando eu e o Bonfá da jogada e botando outros. O livro vem justamente trazer luz em cima dessa história. O cara que estava ali dentro e hoje está aqui falando para explicar e dizer 'essa banda era assim, a gente era amigo assim e funcionava assim, nossa dinâmica era essa, esse é meu ponto de vista'. Porque todas as histórias já foram ditas, mas por terceiros, como Arthur Dapieve (Renato Russo: O Trovador Solitário), Paulo Marchetti (O Diário da Turma 1979- 1986: A História do Rock de Brasília) e outros, que foram citados.
Imagino que tudo mudou pra vocês depois do quebra-quebra no Mané Garrincha. Nenhuma outra banda antes ou depois causou reações tão extremadas de amor e ódio. Por que você acha que a Legião gerava esse climão?
Não tinha como não nos marcar. A gente ficou tão grande que tava tocando em estádio de futebol! E aquele show era na nossa casa. Apesar de morar no Rio há 30 anos, ainda considero Brasília minha casa. Mas esse lance das reações eu credito ao Renato. Era ele o provocador. Em Brasília, a gente tava achando que estava tudo certo, focados em fazer o show da melhor maneira possivel, mas realmente perdemos o controle. Não existem mais artistas como ele. Na frente de 50 mil pessoas, Renato provocava e peitava ainda mais. Digamos que ele jogava gasolina na fogueira. Mas assim era a Legião.
Como está a questão sobre seus direitos e os de Bonfá sobre a Legião?
A gente ganhou, depois de dez anos de processo, o direito de poder 'ser' a Legião. (Risos) É, é um negocio desses. Sabe aquele show com Wagner Moura, que encarou aquele projeto de uma forma incrível? A gente não tinha a liberação (para poder tocar) até uns cinco minutos antes do programa ir ao ar (na MTV). Ali pra mim chegou, foi a última vez. Talvez possamos, algum dia, com uma produtora grande envolvida, excursionar e tal - mas como celebração, a ideia não é se juntar de novo - com artistas novos no palco. Agora, o menino ainda é dono da marca Legião Urbana. Isso é outra questão. Como ainda mantenho minhas relações com meu passado punk rock, eu não acredito em marca. Eu acredito em música, eu acredito no rock e na atitude. Esse negócio da marca sem o Dado e sem o Bonfá não vale nada. Caguei pra marca.
Como se sentiu quando o livro ficou pronto, esse processo de passar a própria vida a limpo? Mudou algo em você?
Sim, claro. O fato de relembrar tudo... Você fica em cima daquilo por tanto tempo. O processo foi esse, né, como se fosse uma autocura, uma terapia. Nesse sentido, foi bem importante. Até relembrei coisas que não lembrava mais, e os caras (Felipe e Romulo) puxavam certos acontecimentos que encadeavam em outros. Foi bem doido. Foram dois anos nesse processo.
Divertido aquele episódio do Bonfá com Raul Seixas no banheiro de um hotel em 1984. O que mais lembra dele?
Cara, que louco que o Raul era. E naquela época ele já era aquela figura antológica, né? Ficamos no mesmo hotel no Rio de Janeiro. Via sempre aquele cara pelo corredor, tomado pelo éter (que Raul costumava inalar). Ele exalava éter, mas era um mito, e de certa forma, uma personalidade incrível. Depois que eu vi o documentário do Walter Carvalho (Raul: O Início, o Fim e o Meio, 2012) é que eu fui lembrando dele. Cara, que louco!
Aqueles punks fazendo saudação nazista (durante a música Soldados) no Circo Troca de Segredos, logo no primeiro show da Legião em Salvador te marcou mesmo, né?
(Risos) Pois é, era um lugar bem precário e tinha aqueles caras, todos negros, fazendo saudação nazista. Eu pensei 'gente, que coisa louca, eles não sabem o que estão fazendo'. Isso era uma coisa que rolava no punk. Mas não era pra valer, era mais como uma provocação, uma lembrança para nunca mais acontecer.
Outro show marcante da Legião em Salvador foi o do lançamento de Que País É Esse (1988), na Concha Acústica.
Esse show na Concha foi punk também. Choveu e o palco ficou tomado pela água. Começamos a tomar choque e pra completar, Renato se jogou na poça e ficou se debatendo lá. Como sabemos, água e eletricidade não combinam, mas no final deu tudo certo. Lembro que depois ainda fui no show do Caetano Veloso, Gilberto Gil e Egotrip (banda em que tocava Pedro Gil, filho de Gilberto Gil, morto pouco depois em um acidente de carro). O Paul Simon tava lá também.
Você cita a banda baiana Maria Bacana como uma de suas preferidas do seu selo, Rock It! O que foi que te chamou a atenção neles na época?
Eles eram pré-emocore, né? As canções eram canções mesmo, com melodias, nas letras tinha lua, primavera. Eram canções bem bonitas. Produzi com Tom Capone e o disco ficou ótimo, mas talvez estivesse antes do seu tempo. Aquela vibe, aquele formato ainda não estavam valendo naquela época. Mas era muito legal.
O que achou da liberação das biografias sem autorização pelo STF?
Meu livro é mais de memórias, lembranças, histórias. Mas sou um paladino defensor das biografias. Todas que li me enriqueceram muito em termos culturais e históricos, acho fabuloso o trabalho dos biógrafos. Li os livros do Garrincha, o Chega de Saudade, O Anjo Pornográfico (todos de Ruy Castro) o Roberto Carlos em Detalhes... Paulo César Araújo, o Fernando Morais, o Ruy Castro e outros são pessoas que dão suas vidas para escrever esse livros, não tem como ser contra. Acho que a questão é ter um selo de garantia aqui no Brasil. A partir do momento que existe um biógrafo que não cumpre com a verdade, ele não merece atenção. Esse é o grande temor: gente sem caráter se apropriando de histórias alheias.
Você parecia o mais equilibrado da banda, o mais tranquilo. Você atribui isso ao fato de ter descoberto ser diabético ainda criança?
A relação com a diabetes provocou em mim um senso de responsabilidade muito cedo, eu era um moleque de 11 anos e tinha que lidar com aquilo. Mas nem tanto. Renato dizia que eu era o presidente do 'Clube da Criança Junkie' de Brasília. Eu contrabalançava, mas na Legião eu era com certeza o cara que ficava entre o Bonfá e o Renato. Mas eu sou filho de diplomata, um contemporizador nato. Sempre costurando acordos, sempre era eu que buscava empresário, advogado, vamos abrir empresa, achar o contador. Eu era esse cara, que ergueu o mínimo de estrutura corporativa que a Legião tinha.
Parece que estamos no meio de uma onda neoconservadora, especialmente entre os jovens. Como você vê isso?
O Renato mesmo provavelmente ia estar achando um horror. Vivemos um momento tão reacionário com tanto conflito PSDB versus Dilma, essa disputa deu voz a uma legião de imbecis. Mas ao mesmo tempo, vivemos uma época de mais liberdade em ralação ao que se vivia em 82, quando começamos e havia uma ditadura institucionalizada. Agora é democracia, pode falar o que quiser, mas paradoxalmente vivemos um dos momentos mais intrigantes e reacionário que eu já vi. E você vê isso o tempo todo na TV, na rua. Mas eu não quero acreditar que somos assim. As pessoas estao assim. Na música, não se arriscam mais. Música nova é quase proibido. Se o Renato estivesse aqui, ele poderia estar falando algo a esse respeito, com a força que ele tinha.
O que achou dos filmes baseados na Legião, Somos Tão Jovens e Faroeste Caboclo?
Com o Somos Tão Jovens eu tinha uma relação pessoal (seu filho, Nicolau, faz o papel de Dado). Achei super bem contado. Brasília era aquilo ali: uma cidade grande no interior do pais com 20 anos. E mostra bem como aquilo tudo aconteceu. Mas também ficou meio infanto-juvenil, uma ótica meio Malhação, meio ingênua talvez, mas aquilo tudo aconteceu de fato. Quando eu vi, falei: 'Brasília, cara! Minha adolescência'. Já no Faroeste, o cara (o diretor René Sampaio) pisou muito na violência, ficou pouco sutil, muito duro, muito pesado. A música é mais clara do que aquilo, claro que tem um duelo, mas era um negócio mais sobre o Brasil rural e um retrato do país. Temos outras facetas que não só a violência.
Além do Estúdio do Dado (programa no canal Bis) , o que você tem feito? Planos para um álbum solo novo?
O Estúdio do Dado nós estreamos a segunda temporada. Tem a Zélia Duncan, o Dinho Ouro Preto. Vamos pensar numa terceira temporada. Minha vida gira em torno do meu estúdio, estou lançando o livro, tenho a Banda Pan Americana (com Toni Platão, Dé Palmeira e Charles Gavin), fizemos um disco de clássicos latino-americanos para tentar conectar o brasil com nossos vizinhos. Continuo fazendo shows e trilhas. Fiz agora a trilha do documentário Arquitetura Da Cor, da Beatriz Milhazes, que é incrível. Eu continuo. O estúdio é meu lugar de trabalho. Disco solo novo, ano que vem. Chegando aos 50, depois do livro, eu vou fazer um apanhado, uma colagem com a coisa do livro, as memórias. A ideia é fazer ano que vem, com participação de outras pessoas. Estou começando com o repertório e juntando os parceiros. Ah! No ano passado eu gravei uma versão em português para uma música do Gang of Four (banda pós-punk inglesa, grande influência para a Legião). Gravei e mandei para o Andy Gill (guitarrista, que participou do show com Wagner Moura). Deve sair ainda esse ano.
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