quarta-feira, 16 de maio de 2018

eNTrevista: Marina Lima

'Quando você cria, a arte faz você sentir o laço irremediável com a vida'
por Jamille Bullé


Marina Lima lança álbum "Novas Famílias" com ritmos populares e questões sociopolíticas da atualidade, reforçando seu perfil de vanguarda
















Com quase 40 anos de carreira e diversas canções de sucesso, Marina Lima parece lidar muito bem com todas as mudanças que o mundo e o cenário artístico vêm vivendo ao longo das décadas. Ao receber a reportagem pontualmente em um hotel da zona sul do Rio de Janeiro, a cantora mostrou que não tem dificuldades de acompanhar o tempo – ou de estar à frente dele –, tanto fora quanto dentro da música. Aos 62 anos, Marina traz ritmos e questões sociopolíticas atuais no álbum "Novas Famílias", lançado no fim de março deste ano.

Seu novo disco tem influências dos mais diferentes gêneros musicais. Como foi o processo de composição?
Eu vivo no presente. O Brasil tem milhões de estilos positivos. Apesar de tudo que está acontecendo, musicalmente é muito rico. As pessoas têm talento e gingado. Você não tem que ter dinheiro para ter talento. O Brasil tem uma criatividade no ar. Todas as coisas que me interessam musicalmente eu assimilei e tentei me misturar com elas, para fazer um álbum que estivesse presente no Brasil agora, nesse momento. Acho que minha ida para São Paulo também ajudou, proporcionou uma troca muito grande de pessoas do Brasil inteiro, contato com outros ritmos. Saí um pouco daquela coisa carioca. Para mim, isso foi bom.

Há ritmos musicais que ainda são alvo de preconceito no país, mas você abraçou alguns deles no álbum. Você acredita que esses gêneros marginalizados contribuem para a música?
Quando comecei, sempre me interessei por tudo. Sempre fui assim. Sou vira-lata, sabe? Gosto de misturar. Não gosto de renoma, nunca gostei. Mudar isso, que é uma característica minha, agora, seria hipocrisia. Sou a pessoa que gosta de estar ali no meio, de me misturar, de aprender, de ensinar. É uma troca. Gosto muito de funk. Ritmo negro, de gente negra, gente do povo, que tem o ritmo no sangue. O Brasil, agora, com esse funk, conquistou um espaço, no Rio principalmente. Com a bossa nova, com o samba, com o funk agora também. Ele tem um valor incrível de expressão para as pessoas da favela, que conseguiram criar um ritmo, uma mistura, se reinventar. Isso tem um valor semelhante ao do samba, sem desmerecer a novidade do funk. É muito importante em cada época as pessoas mostrarem o que são capazes de fazer.

O gosto pelo funk se explicitou na canção "Só os coxinhas". De onde surgiu a ideia?
Eu entrei na brincadeira da linguagem do funk. É uma gozação mesmo, do funk, que é uma música muito popular no Brasil agora, que eu adoro, adoro o ritmo, para me ajudar a levantar essa bandeira. Eu não aguento coxinha, não aguento gente chata, careta. Não entro na polarização do coxinha contra o mortadela. Tem coxinha em qualquer partido, posição social. Coxinha não é privilégio de nenhuma classe política. São pessoas chatas, que ficam cagando regra, dizendo como você tem que viver sua vida. Que só pensam em dinheiro, em ficar rico. Acho isso a maior loucura, não pode ser o centro. Pode ser o centro desse sistema desumano que está aí, mas eu não vou comprar isso para mim. O coxinha que eu falo é a pessoa careta que segue o sistema.

Pensou em algum político nessa busca pelo dinheiro quando escreveu em "Só os coxinhas"?

Sérgio Cabral. Não quero chutar cachorro morto, o cara está com mais de cem anos para cumprir. Mas quando vi aquele vídeo dele na Farra dos Guardanapos, com aquela turma de gente presa, celebrando dinheiro que roubou de todos nós, com chapéu, fazendo uma dancinha... Aquilo me deu uma raiva. Aquele é o pior tipo de coxinha, é o que rouba. A que ponto pode chegar uma pessoa dessa. Na hora pensei: tenho que falar sobre isso.
Você encara a arte como expressão ideológica?
A música é a minha política. Quando alguém escreve um livro, faz um disco, pode se debruçar sobre assuntos que movem ele, não necessariamente do dia a dia, mas que ele acha que a partir disso pode abrir os olhos de muita gente. Eu nunca fui uma pessoa alienada. Eu trabalho na minha política. Quando eu lancei Fullgás, em 1984, tinha um manifesto dentro. A Marina Abramovic, que faz performance, escreveu um manifesto que diz: quanto mais pessoal ou profunda é uma obra, mais universal ela se torna. Se eu puder falar de assuntos que me tocam profundamente, ele irá tocar muita gente. 

Você aborda pautas feministas desde os anos 1980. Como você vê o movimento hoje?
Nós, as minorias todas, gays, LGBTs, negros, que não são minoria [numérica], mas são as que não têm tanto acesso ao poder, somos muito desorganizados. A gente não é tão organizado quanto essas pessoas de direita que estão assumindo o poder. As mulheres nunca foram unidas. Desde que era pequena, sempre tinha uma mulher contra a outra, vendo a outra como rival. Enquanto os homens estão juntos, jogando futebol, as mulheres estavam uma olhando para outra de cara torta. Cresci vendo isso no colégio... Essa nova união das mulheres é muito importante. Nós unidas somos muito mais fortes. Se a gente quer reivindicar, falar sobre salários, justiça, a gente tem que estar unido. Não é uma pessoa só que faz isso, são grupos. Essa consciência é muito importante. As mulheres precisam estar unidas em relação a uma causa. À nossa causa. Ter voz ativa, ganhar um salário igual pela nossa capacidade. Tudo isso torna, para mim, o mundo mais interessante. Eu acho fascinante o direito de as pessoas poderem exercer a cidadania. Me dá perspectiva de ser feliz e ver o outro feliz. Por que o que adianta só você ser feliz, e todo mundo em volta se sentir desmerecido, invisível? Eu quero trocar, rir junto.

Apesar do tempo de estrada, sua música aparece reinventada. O que move essa vontade trazer o novo?

O que me mantém viva é criar, produzir. Minha história é isso. O sucesso é consequência. Para um artista, o maior desafio é ele sentir que está se inovando, se depurando. O que o tempo pode trazer? Autoconhecimento. Não para você ficar sentado em cima de uma pedra "aqui eu conquistei e ninguém me tira". O tempo é móvel. A minha vida não para. Enquanto eu estiver sendo estimulada, gostar de cantar, tocar e criar, podem contar comigo.

Você segue atenta ao que vem acontecendo no cenário musical atual. Quais músicos da nova geração você gosta?
Tem o Marcelo Jeneci, que é a pessoa que mais me impressiona nesses anos todos. Ele é uma joia. Bruta e lapidada. É o que quer. Um grande músico, cantor e compositor. Tem a Letrux [Letícia Novaes], que eu sinto como se fosse minha filha. Ela podia ser minha filha, e pelo trabalho dela, podia ser minha filha mesmo. Ela leva adiante, no Rio de Janeiro, uma outra vertente, mais pop. Não só samba. Me sinto representada por ela aqui. Tem a banda que trabalha comigo, Strobo, do Pará, que eu acho incrível. Eles fazem uma música eletrônica industrial. Poderia ser de qualquer parte do mundo, mas é brasileira.
Você busca inspiração em outros ramos da arte?Busco, principalmente agora, que o noticiário está muito ruim no mundo todo. Acho que a arte é para isso, para dar um sentido mais profundo à vida. A arte é para embelezar, não em um sentido estético, mas para trazer luz, vida e sentido às nossas vidas. Muitas vezes em que estou me sentindo só - e isso está pesando - eu vou a exposições, vejo shows, leio livros. Descubro que todo artista, toda pessoa que cria, em qualquer profissão, se sente meio estrangeiro em qualquer lugar. Porque um artista nunca é muito a maioria, ele tem uma maneira específica de olhar o mundo, ele é mais sensível, vê coisas que o outro não vê. Essa é a função dele. Me sinto meio aquecida com o trabalho de outras pessoas.

Vê a solidão como algo que transcende ter alguém?Na hora que você cria, a arte faz você sentir o laço irremediável com a vida. Quando você dá vida a uma coisa que não existia, cria um laço com tudo que não tem explicação. Parece que fortalece, uma coisa que não tem explicação, o que é querer estar viva. Quando eu crio, ela me preenche esse lugar. Depois esvazia de novo. Eu acho bacana ter alguém. Estou casada agora com uma advogada carioca. Tinha um lado meu que sentia muito a solidão do dia a dia. É importante amar e se sentir amado. Mas essa falta de explicação que há para as coisas eu encontro na arte. Essa falta das coisas que não são vistas, quando eu consigo chegar mais perto disso, é através do meu trabalho, da arte.

Ter alguém influenciou no seu trabalho?Antigamente não existia a possibilidade de ter novas famílias, não tinha o direito de ter união estável, adotar criança, ter plano de saúde em comum, deixar uma herança. Hoje, casamento pode ser mais que um namoro eternamente. Faz com que você se sinta uma cidadã, exercendo seus direitos. Encontrei nessa relação, pela primeira vez, algo que me trouxe amor e serenidade. Isso é o que as novas famílias conseguiram. O Brasil é um Estado laico. Leis estão aí para serem cumpridas. O que rege o Brasil não é igreja. Essa questão entrou no disco. Nasceu de mim. Se for muito profundo, aquilo vai se tornar uma coisa que muita gente pode se relacionar e pode entender melhor através do teu olhar. Para mim, essa é a minha função.

Você enxerga a pluralidade como algo presente em diversas faces no álbum, tanto musicalmente, quanto em assuntos políticos?É uma mistura com ingredientes escolhidos a dedo, para ser um cardápio saboroso e que não dê muita ressaca, mas que possa acordar e acender as pessoas. A minha melhor tradução é a minha música.

Nenhum comentário:

Postar um comentário