Módulo 1000
“Não Fale com Paredes”por Tiago Ferreira
“Não Fale com Paredes”por Tiago Ferreira
O Módulo 1000 é tido hoje como referência nacional de rock progressivo, dono de um dos LPs mais raros do gênero, com CD fora de catálogo e reconhecido pela excelência musical que criou. Mas demorou pra chegar a isso.
O único registro oficial da banda é o álbum Não Fale com Paredes, que saiu a muito custo pela Top Tape, na segunda metade de 1970.
Antes desses cariocas chegarem à esplêndida técnica que norteia o disco, tiveram que tocar, sobreviver e persistir no penoso cenário underground do rock.
A exemplo dos Brazilian Bitles, que ganhavam dinheiro com seus covers (e até chegaram a ser confundidos com os próprios Beatles por alguns programas de TV desavisados), Daniel Romani e Eduardo Leal tentaram criar a mesma projeção com os Brazilian Monkees (com covers de The Monkees).
Os clubes no Fluminense e no Botafogo eram os melhores locais para conseguir uns trocados, mas as coisas tomaram outro rumo quando se inscreveram no concurso de bandas amadoras do programa de Paulo Silvino, na TV Globo.
Nesse tempo, eles contaram com a ajuda do vibrafonista Paulo Cezar Willcox, conhecido como Zé Bola. Jazzista dos bons e com grande presença de palco, Zé Bola incrementou a sonoridade do grupo com um rigor que permitiu evolução a Daniel, Eduardo, Candinho e Luiz Paulo Simas, exímio tecladista e peça fundamental para a cozinha musical do grupo.
A partir de então a banda se chamaria Código 20, como forma de se desprender a um único repertório de covers. Assim, eles podiam expandir suas versões para temas de Burt Bacharach e Nelson Motta (por influência de Zé Bola) a Cream e Rolling Stones.
O novo integrante estimulou os ensaios, ajudou a definir horários e estipulou que cada instrumento fosse bem cuidado, pois era entendido como um bem coletivo. Por conta desse rigor organizacional, a banda aprimorou-se e faturou a premiação da TV Globo com apresentações acachapantes de “There’s a Kind of Rush”, dos Herman’s Hermits, e “Tequila”, dos The Champs, muito executada na época (mas nenhuma que se igualasse, pelo que dizem as boas línguas, à versão da banda).
Nesse tempo, a banda já se chamava Código 20, mas preferiu mudar por conta de outra banda de São Paulo com nome parecido (Código 90). Ficou Módulo 1000 (“alusão direta à corrida espacial e à iminente chegada do homem à Lua”, escreveu o jornalista Nelio Rodrigues no livroHistórias Secretas do Rock Brasileiro). E novas portas se abririam: tocariam em clubes e baladas em São Paulo e na Baixada Santista, espalhando suas versões nada convencionais de acid-rock, com um toque apimentado de neotropicalismo.
No entanto, os integrantes da banda sentiam escapar a fluidez musical da banda, por conta dos novos rumos que surgiram após a entrada de Zé Bola. Com o passar do tempo, eles mesclaram o som típico de bailes com suas usuais experimentações sônicas. Zé insistia no ‘quanto mais comercial, melhor’, mas percebeu que a pegada era outra na apresentação do V Festival de MPB da Record, de 1969, onde a banda deixou de usar ternos e vestiu-se de andrajos similares aos que os Tropicalistas mostraram em 1967.
A banda mandou mal na apresentação e Zé Bola decidiu dar o fora. A demanda por bailes diminuiu, mas a sorte haveria de mudar após a intervenção dos compositores Sérgio Fayne e Vitor Martins para que conseguissem audição na gravadora Odeon. Por ser dona de um catálogo extenso de MPB, Jovem Guarda e soul brasileiro, eles preferiram apresentar versões adocicadas de alguns covers.
De música original, ficou a poderosa “Ferrugem e Fuligem”, que marcava com guitarras eletrizadas e quentíssimas uma letra de cunho ambiental. Naquele momento, esta faixa integraria a coletânea Posições, também com “Curtíssima” e outras faixas dos grupos Tribo, Equipe Mercado e Som Imaginário. (No relançamento em CD de Não Fale com Paredes, as duas faixas foram incluídas como bônus.)
O disco, de fato, só chegou a ser gravado depois, em outra gravadora. O produtor da Top Tape Ademir Lemos, que tinha grande aval do chefãoZezinho, viu a potência ao vivo da banda e sentiu que a experiência de tocar ao redor do Brasil (por conta da influência do agitador cultural Marinaldo Guimarães), aliado à técnica inigualável da banda, era merecedora de liberdade total.
Com toda essa liberdade, o trabalho mais difícil foi convencer o técnico de som Válter, que não entendia as maluquices de gravar teclados no banheiro, usar microfonia para ambiência, inserir ecos e encontrar novos tipos de reverberação.
Quando Zezinho foi conferir o resultado final de Não Fale com Paredes, felizmente era tarde. O disco já estava na prensa, em formato soberbo de capa tripla, pronto para ir às lojas.
Os xingamentos não foram poucos. “Este disco é uma merda e não dá pra explicar uma merda dessas!”, disse Zezinho, conforme registrou a obra de Nelio.
Desprovido de qualquer traço pop, o único álbum do Módulo 1000 é lisérgico, progressivo, provocador e acentuadamente virtuoso. Os riffs de guitarra de Daniel na faixa-título se mesclam aos efeitos de fuzz, como se viesse do mesmo embrião dum Maggot Brain (1971). “Led-em-Ecalg”, que foi parar na coletânea europeia Love, Peace & Poetry, tem guitarras enfurecidas, mas não tem como não destacar as viradas excepcionais da bateria de Candinho.
Uma das grandes características da banda foi alocar a sonoridade de teclados e órgão na proposta roqueira. Zé Bola estava fora, mas algum crédito ele tem que merecer por fazer com que Simas fluísse numa linguagem solta no instrumento. Naquele momento, a grande novidade era o sintetizador, e é a ele que se deve os efeitos de “Metrô Mental”, uma das primeiras faixas no Brasil a fazer uso do instrumento.
Mesmo sendo bem viajeira e psicodélico, Não Fale com Paredes é um disco que engana por ser doidivanas, assim como engana por uma suposta lucidez. “Turpe Este Sine Crine Caput”, que chegou a ser contestada pelos militares do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) por conta de sua letra em latim, não fala nada mais que ‘É um fato, é um fato, é horrível uma cabeça sem cabelos…‘
“Olho por Olho, Dente por Dente” é a mais cantarolável do grupo. Não há nenhum trejeito pop, mas o peso das viradas é de entortar os olhos de qualquer afeiçoado por acid-rock. É o momento da roda, e não é de se estranhar que role um pogo durante sua vibrante execução.
Não Fale com Paredes é um disco intenso, mas curto. A versão original do vinil (raríssimo) contém apenas 9 faixas. As citadas “Ferrugem e Fuligem” e “Curtíssima” entraram como faixa-bônus no CD, também esgotado. É possível encontrar versões internacionais que incluem faixas como “Big Mama”, “Waiting for Tomorrow”, “Cafusa”, “The Cancer Stick”, “Isto Não Quer Dizer Nada” e “Gloriosa”, todas do período em que a banda ainda tocava em bailes para sobreviver.
Aparentemente elas surgem deslocadas no contexto derretedor do álbum, mas ajudaram a banda a se manter na cena e ilustrar um momento único no rock brasileiro. São, portanto, necessárias para entender a grandeza de uma das bandas mais virtuosas que o Brasil já teve.
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