quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Cena Independente – O buraco é mais embaixo


Muito se comenta sobre a cena musical independente no Brasil, em São Paulo mais especificamente, e sua fragilidade e até mesmo suposta existência. Procura-se um culpado a quem atribuir o fracasso de público na maioria esmagadora dos eventos, os prejuízos acumulados pelos espaços culturais dispostos a receber os mesmos sem se prostituir, dedicando seu espaço às bandas covers ou extorquir seu público com preços abusivos, e o pequeno alcance dos esforços de divulgação dos trabalhos das bandas.
Um ponto de partida interessante seria perguntar por que eventos com bandas internacionais e preços exorbitantes atraem um público grande, independente do dia da semana, horário ou local, enquanto as bandas nacionais, a preços baixos, quando não eventos gratuitos, tocam para meia dúzia de pobres diabos? Existe uma resposta um tanto óbvia: estrutura. Ou falta dela.

Quando você vai a um show internacional geralmente se depara com músicos que se dedicaram ao seu instrumento por vários anos (lembrando que muito provavelmente tiveram aulas de música nas escolas durante sua juventude e que lhes proporcionou o contato e identificação com essa forma de arte ainda bastante jovem), tocando em equipamentos de excelente qualidade (aos quais tem acesso a preço justo ou ao menos acessível em seus países de origem) e que você provavelmente já teve a chance de conferir material gravado e se familiarizar, conhecendo as canções e cantando junto as letras. E é essa a sensação que te faz pagar pra assistir a essa apresentação. Aí está o primeiro ponto a ser considerado. Ou seja, o diferencial é qualidade de equipamento (lembra-se daquela frase “parece energia, mas é só distorção”? Cabe perfeitamente nesse caso) e envolvimento pessoal com a música, certo?
O músico brasileiro em geral “descobre” a música mais tarde, no fim da adolescência, e quando decide se dedicar a um instrumento precisa conciliar seu aprendizado com seus estudos, trabalho e família. Se vencer essa primeira barreira e se torna competente esbarra no próximo empecilho, que é a dificuldade de contar com um equipamento decente. Se te revoltou saber a diferença de preço de um mesmo videogame nos EUA e aqui, procure saber o abismo entre os preços de instrumentos musicais de ponta nesses dois países. Avancemos para a próxima questão, a falta de empatia com o público.
Se a cena nacional não rende lucro, as bandas encontram imensa dificuldade em gravar e disseminar seu material. Seus integrantes precisam ter empregos para poder honrar seus compromissos do dia-a-dia e ainda bancar gravações, ensaios, instrumentos, equipamentos, merchandising, seus deslocamentos até os locais dos shows, além das despesas com alimentação e hospedagem. São raras as bandas que conseguem superar todas essas dificuldades e chegar ao conhecimento do público, se fazer relevante. O que geralmente acontece é o seguinte: o público não conhece, se não conhece não paga pra ver, se não paga, não existe lucro. Sem lucro não existe material. Sem material o público não tem como conhecer o trabalho. E assim segue…
Porém o buraco é mais embaixo. Somos vítimas de uma sociedade egoísta, voltada apenas ao próprio bem-estar. Talvez nem isso. Talvez voltada apenas à própria vaidade. Fomos convencidos pela mídia de que ser brasileiro é ser esperto, levar vantagem, dar um jeitinho. Que fazer a coisa certa é ser bobo. Fomos convencidos por nossos governantes que nossa corrupção ficará impune. Destituídos de qualquer sentimento de patriotismo ou valorização do produto nacional, uma vez que passamos a vida cercados por inimigos loucos pra se aproveitar do nosso menor vacilo.

esconfiamos que o vizinho possa fazer a mesma coisa que faríamos no lugar dele. Apodrecemos e nos acovardamos sob o medo de nosso próprio comportamento. A cadeia de lucro que deveria nos trazer evolução acaba no primeiro que coloca a mão em qualquer migalha que seja. Não acredita, não investe. E no dia em que uma banda se recusa a tocar por achar a situação injusta, se livra dela, sob acusações e abre espaço pra outra, em um estágio menor de evolução, que na busca por seu espaço aceita qualquer humilhação para mostrar sua arte. O nível vai caindo, o público vai se diluindo, as bandas vão ficando de lado, seus integrantes vão desanimando… Já deixaram de lado suas famílias, seu descanso tantas e tantas vezes. Equilibra nas pontas dos dedos trabalho, estudo, ensaios, viagens e de repente se vêem assim, desrespeitados. Suas mensagens e desejos de mudança gritados a plenos pulmões não encontram ecos em ouvidos anestesiados pela ganância.
Não que as bandas sejam sempre vítimas nessa equação. Também carregam, claro, sua parcela de culpa. Quase sempre pela postura de pouco respeito para com público, com os outros músicos ou para com a organização dos eventos. Ainda resquício de nosso abandono aos valores morais, os constantes atrasos nas apresentações. Anuncia-se um evento em determinado horário que frequentemente começa com duas ou mais horas de atraso. Daí então sobem ao palco músicos embriagados, com seus instrumentos devidamente desafinados, cabos defeituosos causando toda a sorte de ruídos imagináveis, e dão início ao festival de microfonias e erros grotescos. Músicos esses que provavelmente já pediram emprestados palhetas, baquetas, correias ou qualquer outra coisa que seja possível esquecer antes de poder se apresentar e que, terminado seu show, pegam suas coisas, viram as costas e vão embora, sem prestigiar os companheiros a se apresentar na sequência.
Poucas coisas fizeram tanto mal ao músico brasileiro quanto a propaganda mentirosa do sexo, drogas e rock’n’roll. Como diria o Boka (RDP) no documentário Guidable, “tão pensando que é Rolling Stones?”. E o que dizer então dos autointitulados formadores de opinião, que vislumbram um talento divino para criar suas letras, sendo que não são capazes de perder(?) alguns poucos minutos lendo, coisa imprescindível a qualquer um que se atreva a escrever?
Nos leva então a mais um ponto chave dessa análise: o público. É bastante comum ouvir dos frequentadores dos eventos independentes sua pseudosuperioridade, sua diferenciação. Discursos inflamados, apontando o dedo em riste para a massa não pensante e influenciável, apreciadora dos estilos musicais da moda e da cultura mainstream. Engraçado pensar que esses que estão sendo julgados como inferiores parecem ter mais consciência de seu papel na cena musical da qual fazem parte do que seus juízes, uma vez que comparecem aos eventos, compram material de seus artistas favoritos, pagam para assistir aos shows e consomem dentro do ambiente, gerando receita que fortalece todas as partes dessa estrutura. Já nossos pequenos donos da verdade se contentam em ir até a porta dos shows e implorar para entrar sem pagar, pois não tem dinheiro suficiente. O que se perceberá em breve não ser verdade, assim que ele começar a consumir no bar. Ou na porta. Fica a pergunta: pra quem se está mentindo? Para o organizador que liberou sua entrada por pena ou pra você mesmo?
Não seria mais honesto pegar seu dinheiro e ir direto pro bar, já que não tem nenhum interesse em ser parte da cena musical independente além de parasitá-la? Quando iremos perceber que estamos todos ligados, que somos todos parte de algo maior e que as coisas só serão vantajosas pra um quando forem vantajosas para todos? Despertar essa consciência é a verdadeira função do ensino. Formar cidadãos cientes de seus direitos, deveres e importância social, capazes de ter uma postura crítica, de raciocínio lógico. E aqui surge mais um componente nessa sucessão de incompetências: o governo. O governo, que deveria focar na educação básica de qualidade para todos, mas prefere mascarar a realidade de desigualdade investindo em universidades federais, às quais só tem acesso alguns poucos afortunados, que puderam pagar por uma educação de qualidade durante sua vida escolar. Justamente aqueles que teriam condições de pagar por um ensino superior de qualidade. Enquanto isso, a maioria, que não tem essa mesma condição financeira, é quem se vê obrigado a pagar. Mas não basta apontar os problemas. Quais seriam então as formas para se quebrar esse círculo vicioso? Mudança de postura de todos que fazem parte da cena e, porquê não, da sociedade em geral.
A única maneira seria conscientizar as pessoas de que elas não são apenas frequentadoras de uma cena, mas que elas são a cena. Não são as bandas, nem as casas de show. As pessoas fazem a cena. Bandas e bares são apenas necessidades que essa cena demanda. A partir dessa mentalidade é possível visualizar dias melhores. Com as pessoas dispostas a fazer parte de algo, a contribuir para evolução delas mesmas enquanto cena. Passaríamos a assistir o desenvolvimento da cultura independente como nunca antes, pois à partir do momento em que os espaços começassem a obter lucro nos eventos, eles teriam a chance de investir numa melhor estrutura de palco e equipamentos, além de conforto ao público. Poderiam passar a remunerar as bandas que se apresentam, dando a estas a chance de também investir em instrumentos mais adequados, gravações mais profissionais e divulgação decente. E assim o público, sempre a pedra fundamental da cena, começaria a ter nos shows das bandas independentes nacionais a mesma sensação que tem nos shows internacionais, quando não maior, uma vez que se sentiria ainda mais integrado a tudo isso.
Soa utópico, mas a mim parece apenas o caminho mais lógico.
Artigo por Wagner Cyco, guitarrista das bandas Mollotov Attack e Irmã Talitha.

Cazuza e a Política Brasileira

Entrevista Dado Villa-Lobos (por Chico Castro Jr.)

"Na frente de 50 mil, Renato provocava ainda mais"





A poucos dias de completar 50 anos, Dado Villa-Lobos passa a vida a limpo em seu livro Memórias de um Legionário. Escrito a seis mãos - com o auxílio dos historiadores Felipe Demier e Romulo Mattos -, é livro para se ler de um fôlego só, especialmente se o leitor for fã da Legião Urbana ou se, no mínimo, tiver vivido aqueles loucos anos entre as décadas de 1980 e 90. Porque, mais do que o relato do ex-guitarrista da Legião Urbana, Memórias de um Legionário é o relato de uma geração que arrombou as portas da indústria fonográfica, deu um chega pra lá (momentâneo, claro) na aristocracia estabelecida da MPB e botou casas de show e estádios de cabeça pra baixo com multidões enlouquecidas de jovens. Testemunho de alguém que estava no olho desse furacão, o livro, na verdade, tem seu maior mérito no fato de ser o relato em primeira pessoa dos bastidores da Legião Urbana, detalhando os encontros que levaram à formação da banda, as primeiras apresentações, a chegada ao eixo Rio - SP, a contratação pela EMI, as gravações de todos os discos, o estouro, as turnês pelo país. Estão aqui também os detalhes do relacionamento interno da banda, sujeita aos altos e baixos emocionais de Renato Russo e até a alguns ataques de estrelismo do baterista Marcelo Bonfá. De quebra, a infância e adolescência deste filho de embaixador, que costumava roubar Mobiletes nas ruas de Paris.

Qual era sua intenção ao escrever suas memórias?
Era uma questão de juntar os cacos. Estou  chegando aos 50 anos (no dia 29) e há uma série de questões em relação à Legião. O Renato se foi de forma trágica e repentina, a questão dos herdeiros meio confusa. O livro na verdade foi algo que eu percebi que poderia juntar os cacos, todos os fragmentos numa coisa só, e assim ter uma percepção mais exata do que de fato aconteceu e repercute até hoje. Foi uma experiência muito positiva. Gostei do resultado. É um documento com relatos que estendem por  30 anos, com uma contextualização histórica, social, política e cultural.

O livro meio que aclara coisas que na época ficaram meio obscuras, como a saída do (baixista) Negrete e o quebra-quebra no Estádio Mané Garrincha (em 1988). Dar sua versão desses episódios foi outra razão para o livro?
Acho que sim, tudo foi meio dentro de uma sincronicidade. Eu estava querendo me distanciar da história toda. Mas aí o herdeiro (Giuliano Manfredini, filho de Renato Russo) montou um site que estava transformando a história de  forma stalinista, mexendo, tirando eu e o Bonfá da jogada e botando outros. O livro vem justamente trazer luz em cima dessa história. O cara que estava ali dentro e hoje está aqui falando para explicar e dizer 'essa banda era assim, a gente era amigo assim e funcionava assim, nossa dinâmica era essa, esse é meu ponto de vista'. Porque todas as histórias já foram ditas, mas por terceiros, como  Arthur Dapieve (Renato Russo: O Trovador Solitário),  Paulo Marchetti (O Diário da Turma 1979- 1986: A História do Rock de Brasília) e outros, que foram citados.

Imagino que tudo mudou pra vocês depois do quebra-quebra no  Mané Garrincha. Nenhuma outra banda antes ou depois causou reações tão extremadas de amor e ódio. Por que você acha que a Legião gerava esse climão?
Não tinha como não nos marcar. A gente ficou tão grande que tava tocando em estádio de futebol! E aquele show era  na nossa casa. Apesar de morar no Rio há 30 anos, ainda considero Brasília minha casa. Mas esse lance das reações eu credito ao Renato. Era ele o provocador. Em Brasília, a gente tava achando que estava tudo certo, focados em fazer o show da melhor maneira possivel, mas realmente perdemos o controle. Não existem mais artistas como ele. Na frente de 50 mil pessoas, Renato provocava e peitava ainda mais. Digamos que ele jogava gasolina na fogueira. Mas assim era a Legião.

Como está a questão sobre seus direitos e os de Bonfá sobre a Legião?
A gente ganhou, depois de dez anos de processo, o direito de poder 'ser' a Legião. (Risos) É, é um negocio desses. Sabe aquele  show com Wagner Moura, que encarou aquele projeto de uma forma incrível? A gente não tinha a liberação (para poder tocar) até uns  cinco minutos antes do programa ir ao ar (na MTV). Ali pra mim chegou, foi a última vez. Talvez possamos, algum dia, com uma produtora grande envolvida, excursionar e tal - mas como celebração, a ideia não é se juntar de novo - com artistas novos no palco. Agora, o menino  ainda é dono da marca Legião Urbana. Isso é outra questão. Como ainda mantenho minhas relações  com meu passado punk rock, eu não acredito em marca. Eu acredito em música, eu acredito no rock e na atitude. Esse negócio da marca sem o Dado e sem o Bonfá não vale nada. Caguei pra marca.

Como se sentiu quando o livro ficou pronto, esse processo de passar a própria vida a limpo? Mudou algo em você?
Sim, claro. O fato de relembrar tudo... Você fica em cima daquilo por tanto tempo. O processo foi esse, né, como se fosse uma autocura, uma terapia. Nesse sentido, foi bem importante. Até relembrei coisas que não lembrava mais, e os caras (Felipe e Romulo) puxavam certos acontecimentos que encadeavam em outros. Foi bem doido. Foram dois anos nesse processo.

Divertido  aquele episódio do Bonfá com Raul Seixas no banheiro de um hotel em 1984. O que mais lembra dele?
Cara, que louco que o Raul era. E naquela época ele já era  aquela figura antológica, né? Ficamos no mesmo hotel no Rio de Janeiro. Via sempre aquele cara pelo corredor, tomado pelo éter (que Raul costumava inalar). Ele exalava éter, mas era um mito, e de certa forma, uma personalidade incrível. Depois que eu  vi o documentário do Walter Carvalho (Raul: O Início, o Fim e o Meio, 2012) é que eu  fui lembrando dele. Cara, que louco!

Aqueles punks fazendo saudação nazista (durante a música Soldados) no Circo Troca de Segredos, logo no primeiro show da Legião em Salvador te marcou mesmo, né?
(Risos) Pois é, era um lugar bem precário e tinha aqueles caras, todos negros, fazendo saudação nazista. Eu pensei 'gente, que coisa louca, eles não sabem o que estão fazendo'. Isso era uma coisa que rolava no punk. Mas não era pra valer, era mais como uma provocação, uma lembrança para nunca mais acontecer.

Outro show marcante da Legião em Salvador foi o do lançamento de Que País É Esse (1988), na Concha Acústica.
Esse show na Concha foi punk também. Choveu e o palco ficou tomado pela água. Começamos a tomar choque e pra completar, Renato se jogou na poça e ficou se debatendo lá. Como sabemos, água e eletricidade não combinam, mas no final deu tudo certo. Lembro que depois ainda fui no show do Caetano Veloso, Gilberto Gil e Egotrip (banda em que tocava Pedro Gil, filho de Gilberto Gil, morto pouco depois em um acidente de carro). O Paul Simon tava lá também.

Você cita a banda baiana Maria Bacana como uma de suas preferidas do seu selo, Rock It! O que foi que te chamou a atenção neles na época?
Eles eram pré-emocore, né? As canções eram canções mesmo, com melodias, nas letras tinha lua, primavera. Eram canções bem bonitas. Produzi com Tom Capone e o disco ficou ótimo, mas talvez estivesse antes do seu tempo. Aquela vibe, aquele formato ainda não estavam valendo naquela época. Mas era muito legal.

O que achou da liberação das biografias sem autorização pelo STF?
Meu livro é mais de memórias, lembranças, histórias. Mas sou um paladino defensor das biografias. Todas que li me enriqueceram muito em termos culturais e históricos, acho fabuloso o trabalho dos biógrafos. Li os livros do Garrincha, o Chega de Saudade, O Anjo Pornográfico (todos de Ruy Castro) o Roberto Carlos em Detalhes... Paulo César Araújo, o Fernando Morais, o Ruy Castro e outros são pessoas que dão suas vidas para escrever esse livros, não tem como ser contra. Acho que a questão é ter um selo de garantia aqui no Brasil.  A partir do momento que existe um biógrafo que não cumpre com a verdade, ele não merece atenção. Esse é o grande temor: gente sem caráter se apropriando de histórias alheias.

Você parecia o mais equilibrado da banda, o mais tranquilo. Você atribui isso ao fato de ter descoberto ser diabético ainda criança?
A relação com a diabetes provocou em mim um senso de responsabilidade muito cedo, eu era um moleque de 11 anos e tinha que lidar com aquilo.  Mas  nem tanto. Renato dizia que  eu era o presidente do 'Clube da Criança Junkie' de Brasília. Eu contrabalançava, mas na Legião eu era com certeza o cara que ficava entre o Bonfá e o Renato. Mas eu sou filho de diplomata, um contemporizador nato. Sempre costurando acordos, sempre era eu que buscava empresário, advogado, vamos abrir empresa, achar o contador. Eu era esse cara, que ergueu o mínimo de estrutura corporativa que a Legião tinha.

Parece que estamos no meio de uma onda neoconservadora, especialmente entre os jovens. Como você vê isso?
O Renato mesmo provavelmente ia estar achando um horror. Vivemos um momento tão reacionário com tanto conflito PSDB versus Dilma, essa disputa deu voz a uma legião de imbecis. Mas ao mesmo tempo, vivemos uma época de mais liberdade em ralação ao que se vivia em 82, quando começamos e havia uma ditadura institucionalizada. Agora é democracia, pode falar o que quiser, mas paradoxalmente vivemos um dos momentos mais intrigantes e reacionário que eu já vi. E você vê isso o tempo todo na TV, na rua. Mas eu não quero acreditar que somos assim. As pessoas estao assim. Na música, não se arriscam mais. Música nova é quase proibido. Se o Renato estivesse aqui, ele poderia estar falando algo a esse respeito, com a força que ele tinha.

O que achou dos filmes baseados na Legião, Somos Tão Jovens e Faroeste Caboclo?
Com o Somos Tão Jovens eu tinha uma relação pessoal (seu filho, Nicolau, faz o papel de Dado). Achei super bem contado. Brasília era aquilo ali: uma cidade grande no interior do pais com 20 anos. E mostra bem como aquilo tudo aconteceu. Mas também ficou meio infanto-juvenil, uma ótica meio Malhação, meio ingênua talvez,  mas aquilo tudo aconteceu de fato. Quando eu vi, falei: 'Brasília, cara! Minha adolescência'. Já  no Faroeste, o cara (o diretor René Sampaio) pisou muito na violência, ficou pouco sutil, muito duro, muito pesado. A música é mais clara do que aquilo, claro que tem um duelo, mas era um negócio mais sobre o Brasil rural e um retrato do país. Temos outras facetas que não só a violência.

Além do Estúdio do Dado (programa no canal Bis) , o que você tem feito? Planos para um álbum solo novo?
O Estúdio do Dado nós estreamos a segunda temporada. Tem a Zélia Duncan, o Dinho Ouro Preto. Vamos pensar numa terceira temporada. Minha vida gira em torno do meu estúdio, estou lançando o livro, tenho a Banda Pan Americana (com Toni Platão,  Dé Palmeira e Charles Gavin), fizemos um disco de clássicos latino-americanos para tentar conectar o brasil com nossos vizinhos. Continuo fazendo shows e trilhas. Fiz agora a trilha do documentário Arquitetura Da Cor,  da Beatriz Milhazes, que é  incrível. Eu  continuo. O estúdio é meu lugar de trabalho. Disco solo novo, ano que vem. Chegando aos 50, depois do livro, eu vou fazer um apanhado, uma colagem com  a coisa do livro, as memórias. A ideia é fazer ano que vem, com participação de outras pessoas. Estou começando com o repertório e juntando os parceiros. Ah! No ano passado eu gravei uma versão em português para uma música do Gang of Four (banda pós-punk inglesa, grande influência para a Legião). Gravei e mandei para o Andy Gill (guitarrista, que participou do show com Wagner Moura). Deve sair ainda esse ano.



Vento Motivo - Segunda-Feira Será

O "NHEENGATU" dos Titãs

Hérica Marmo e Luiz André Alzer falam sobre o último albúm dos Titãs.



Não consuma esse disco se tiver estômago fraco. “Nheengatu” é repleto de cenas fortes, impróprias para quem não encara as verdades de frente. Tem pedofilia. Tem fome, miséria, crack. Tem machista covarde que dá flores para a mulher, mas que se revela um monstro de ciúme possessivo. Tem bossais preconceituosos que espancam quem não segue suas cartilhas de costumes. Tem quem sobrevive em vez de viver e personagens de HQs que poderiam perfeitamente ter saído das redes sociais.
“Nheengatu” é uma crônica ácida do Brasil em carne viva, com as angústias e mazelas que estão bem aqui do nosso lado.  Os Titãs, que se consagraram por cravar a unha na ferida e nunca tiveram pudor em virar do avesso temas incômodos, lançam seu 18º disco, mais críticos e atuais do que nunca. Dessa vez, em tempo real. Como Fardado, composta enquanto protestos e manifestações varriam o país afora: “Por que você não abaixa essa arma / O meu direito é seu dever / Por que você não usa essa farda / Pra servir e pra proteger”.
“Desde o começo, tínhamos vontade de fazer um instantâneo do tempo que a gente vive. Fardado foi diretamente inspirada na fotografia de uma adolescente parada na frente de uma tropa da PM com um cartaz escrito: ‘Fardado, você também é explorado'”, conta Sérgio Britto.
Nesse retrato comtemporâneo, em que elementos regionais ao som predominantemente pesado, também aparecem os que andam pelas ruas por outros motivos. Drogados e mendigos perambulam por endereços famosos de São Paulo em Mensageiro da Desgraça. A Letra junta os sem-teto de home com os excluídos da nossa história, os índios. "Vejo meus antepassados / vou vingar os meus irmãos / Os que são queimados / Enquanto dormem no chão".


Foi olhando para nossas origens, aliás, que os Titãs batizaram o disco. Nheengatu é uma lingua derivada do tupi-guarani, criada pelos jesuítas no século XVII para unir as tribos nativas do Brasil e os brancos recém-chegados. O contraponto está na capa, com a imagem da Torre de Babel, mito bíblico sobre a completa falta de comunicação entre os homens.
"Nheengatu define bem um disco que trata dos assuntos mais sensíveis no desenvolvimento da sociedade brasileira nos dias de hoje. Nossa civilidade, ética e moral estão nas letras deste CD", detalha Paulo Miklos, que se inspirou na música indígena para compor, em parceria com o ex-titã Arnaldo Antunes, a ótima Cadáver sobre cadáver: "Retomamos esta referência que já está na canção 'Cabeça Dinossauro', de 1986, e que agora experimentamos com mais profundidade.
As 14 faixas do álbum formam uma sequência vigorosa, intensa, difícil de desacoplar uma da outra, que retrata bem a personalidade forte dos Titãs. Essa contundência fica latente em Pedofilia, assunto tabu na música brasileira, composta do ponto de vista da vítima. A letra é o próprio depoimento, envergonhado e indignado, um desabafo depois de sofrer nas mãos de seu algoz. A interpretação de Britto é primorosa e revela todas as nuances do crime. Suave e doce nos argumentos do pedófilo, nervosa e repulsiva quando a vítima cospe para fora a barbaridade que sofreu.
O disco vai também direto ao ponto de Quem são os animais?, que bate forte nas humilhações sofridas pelas minorias: "Te chamam de viado e vivem no passado / Te chamam de macaco e inventam o teu pecado". Já Flores para ela poderia ser uma tragédia das páginas policiais, do marido possessivo e descontrolado que se sente dono da própria mulher. A interpretação envolvente de Miklos vai crescendo e se com o avançar da música, enquanto a guitarra de Bellotto acompanha a tensão, culminando num solo que grita, berra, como um pedido de socorro.
A banda - que neste álbum volta a contar com Mario Fabre na bateria - também ataca o politicamente correto que patrulha opiniões e comportamentos. "Não pode fumar, não pode beber / Não pode xingar, não pode correr", reclama Britto em Não pode. A futilidade dos verborrágicos que não tem nada para dizer é tratada em Fala, Renata, assiada pelo trio Britto, Miklos e Bellotto - também autores da energica Eu me sinto bem.

A obsessão cega por uma religião que suga as crenças e o dinheiro do fiel dá as caras em Senhor. O sarcasmo crítico se traduz na estrofe “Querem meu dinheiro, querem meu salário / Um santo no espelho, uma sombra no armário”.
“Senhor foi inspirada também nessa vontade de fotografar o Brasil atual, em que a religião se mistura na política com resultados terríveis, como a manipulação e a exploração de fiéis, a resistência de bancadas religiosas em aceitar a discussão de pesquisas com células tronco, descriminalização do aborto... A canção usa o formato de uma oração ao contrário, com uma base punk bem titânica, que lembra coisas de nossos discos mais antigos”, explica Tony Bellotto, autor da música.
E se o álbum remete aos primórdios dos Titãs, flerta também com a história da música brasileira, numa colagem genial em Baião de dois. A composição de Miklos inicia com "O mundo é um moinho", de Cartola, e "A vida é um buraco", choro de Pixinguinha. Segue adiantes com o "Mundo me condena" de Noel Rosa, e "A vida me ultrapassa", verso de Rita Lee e Tom Zé. Até desembocar em "É só isso esse baião, e não tem mais nada não", inspirada em "Bim Bom", de João Gilberto.
O lado mais leve (mas não menos crítico) de "Nheengatu" vem do olhar sempre afiado de Branco Mello, em parcerias com o cartunista Angeli e o autor e diretor teatral Hugo Possolo, em República dos Bananas, e com o também dramaturgo e diretor Aderbal Freire-Filho, em Chegada ao Brasil (Terra à vista) – ambas assinadas ainda pelo guitarrista Emerson Villani.
"Angeli é o criador desses personagens que aparecem na música e um gênio dos quadrinhos. Trata-se de um retrato bem-humorado das diferentes figuras que habitam nossa República. Aderbal e Hugo são grandes artistas do teatro brasileiro. Fizemos essas músicas inicialmente para outros projetos, mas os temas se encaixaram com perfeição nesse trabalho. Um rock falando da chegada ao Brasil e outro sobre os tipos brasileiros que vivem por aqui", conta Branco.

É Branco que interpreta a única releitura do disco. Uma versão pesada para Canalha, clássico de Walter Franco, de 1979, cuja letra conversa bem com as outras faixas do disco. "Walter Franco sempre foi um compositor muito original, com referências variadas e que criou um estilo único. A canção é muito poderosa e continua atual, mesmo depois de tanto tempo", opina Bellotto.
"Nheengatu" tem homenagem. Tem influência da música indígena. Tem um pouco de baião, xaxado e samba. E tem muito rock'n'roll. A densidade e acidez das letras se complementam naturalmente na sonoridade do disco, ancorada no clássico trio guitarra-baixo-bateria. É Titãs em sua (melhor) forma e conteúdo. Sem nenhum pudor.
Hérica Marmo e Luiz André Alzer 
Maio de 2014



Ouça no volume máximo:
https://www.youtube.com/watch?v=DTqrfv8ybkA&list=PLFocyBLGQJgpwPt6817zRE-M31Q-EkinC&index=1