segunda-feira, 29 de abril de 2019

eNTrevista: Pitty

Ser roqueira não me impede de fazer experimentações, diz Pitty, ao lançar disco Matriz, seu trabalho "Bahia lado B" Artista reencontra a própria matriz em disco com música do ex-guitarrista Peu, Maglore e parcerias com Baiana System e Larissa Luz por Pedro Antunes da Rolling Stone foto Otávio Sousa "Saudade é a vontade daquilo que já se sabe que gosta". A frase surge no meio novo disco de Pitty assim, falada, sem rodeios, enfeites e harmonias. É uma vinheta de pouquíssimos segundos, como um post no Twitter, rede social na qual ela é seguida por 8,75 milhões de contas.

Ao trazer para o disco esse olhar sobre o sentimento de distância, temporal e/ou física, Pitty também expõe outras referências suas, caso o spoken word (a declamação de poesias ou letras de música), inspirada por Patti Smith e os poetas beatniks. Pitty está em um novo momento, único na sua trajetória, no qual pode se colocar a pensar sobre quem ela foi, quem ela quer ser. Virou mãe, é apresentadora do programa Saia Justa, do canal GNT, tem milhões de seguidores nas redes sociais e discos de platina acumulados na carreira. Disco que começou nos palcos Em um café no centro de São Paulo, Pitty vê a caneca de cappuccino vazia, mas evita pedir mais um. Era um dia de entrevistas sobre Matriz, novo álbum da artista, lançado nesta sexta-feira, 26, cinco anos passados desde SETEVIDAS, o disco anterior dela. Sobre a sugestão de tomar mais um, opta por um copo d'água. "Se tomar três, a pessoa vai ficar ó...", diz, enquanto agita as mãos. "Parece que eu tenho um ciclo de disco de quatro anos, né", ela brinca. Em abril, Matriz completou 1 ano de gestação. "Foi o maior tempo que eu levei para produzir um disco e foi muito massa. Muita coisa foi se revelando ao longo do processo. Eu sempre respeitei o tempo da música e da criação. Eu demoro para lançar disco, mas coloco isso entre aspas, porque alguém determinou um tempo para se lançar discos." Aos 41 anos, Pitty está colocando a sua máquina de novo em movimento, mas não quer mais seguir estruturas pré-estabelecidas por um mercado já enfraquecido para ser capaz de ditar tantas regras assim, diferentemente de anos atrás. "Não sei quem inventou essa regra de que o artista lança o disco, vai para turnê, lança um DVD, faz turnê do DVD, e depois volta a gravar um novo disco", ela diz, à Rolling Stone Brasil, numa tarde mais quente do que fria de outono, duas semanas antes da chegada do novo álbum. Matriz, produzido por Rafael Ramos é o retorno depois da gravidez de Madalena, filha com Daniel Weksler, nascida de 2017. Trata-se do sexto álbum da artista, entre trabalhos solo e com o duo Agridoce. "Antes, tínhamos uma demanda de trabalho, mesmo", diz Pitty, sobre o ritmo de trabalho de turnês e lançamentos na sequência. "Mas aí a vida vai mudando. Hoje eu tenho uma filha. Comecei a me interessar em fazer as coisas com mais espaçamento. E isso é bom para a arte. Faz respirar, me faz crescer, me dá mais bagagem para compor. Cada um tem um processo de armazenar essas informações que vão virar algo, um texto, um livro, um disco, o que for." Começou nos palcos, porque Pitty assim o quis. Figura das mais importantes do rock nacional desde o início dos anos 2000 (possivelmente a maior daquela safra surgida na virada de século), Pitty chega em 2019 com a liberdade de fazer aquilo que intui ser o melhor, sem pressão. Por isso, voltou aos palcos com um show novo, em 2018, criado a partir do conceito de retomar sua matriz, de onde ela veio, para entender aonde gostaria de chegar - e isso, o objetivo, seria entender qual seria o novo álbum. "Esse disco foi se fazendo. Fui dando oportunidade para ele se fazer. Não queria impor um disco, queria gestá-lo", diz Pitty. "Foi uma experiência massa. Foi uma oportunidade de testar as músicas primeiro ao vivo, algo que antes não tínhamos. Cada show gerava uma expectativa, era um frissom." No meio do caminho, em 2018, Pitty lançou dois singles para esquentar o lançamento do novo trabalho. A primeira foi "Contramão", com participações da rapper Tássia Reis e de Emmily Barreto (do Far From Alaska), e a segunda foi "Te Conecta". A primeira não entrou no disco, "Te Conecta", sim. "Eu sabia que 'Contramão' seria algo assim. Um evento único", conta Pitty, sobre o primeiro single. Já "Te Conecta", ela explica, se encaixa dentro do conceito que ela estava criando para Matriz e foi incluída entre as músicas do disco. De Dorival Caymmi à Bahia "lado B" Matriz, na versão de disco, é o álbum "mais Bahia lado B" da Pitty. Ela, que carregou por tanto tempo o adjetivo de "roqueira baiana" por parte da imprensa do Sudeste, volta às origens, de certa forma, em seu novo disco. Mas ao fazer essa nova ligação com a Bahia, Pitty não quer viver de egotrip, ela quer é tratar da Bahia que conhecei, mas não só. Além daquela na qual nasceu e cresceu, também buscou a nova versão, transformada no período no qual Pitty a deixou para viver em São Paulo. "Se eu for mergulhar nesse mar, eu vou de cabeça", ela brinca. Na primeira música do disco, Pitty já deixa suas intenções claras ao usar um sample de "Noite de Temporal", música de Dorival Caymmi, um dos melhores artistas a retratarem musicalmente Salvador e sua Bahia. Mas Matriz é, principalmente, um disco sobre outra Bahia, aquela contemporânea, do hoje, contada e cantada por quem veio dali, de diferentes gerações. Para isso, Pitty escolheu artistas conterrâneos para dividir os holofotes com ela no trabalho. A banda Baiana System, destaque absoluto no universo alternativo e que tem conseguido exposição no mundo mainstream, inclusive com um bloco de carnaval em São Paulo cada vez mais concorrido chamado Navio Pirata, é protagonista na música "Roda". A faixa, a mais pesada do trabalho, é co-assinada por Russo Passapusso e Beto Barreto, duo criativo do Baiana, e tem o cavaquinho baiano transformado pela distorção, como é comum na discografiada banda. O peso é elevado ao quadrado ao encontrar a guitarra, baixo e bateria com pegadas essencialmente roqueiras. https://youtu.be/wiaJNga_6Gg (Te Conecta)
Nas letras, Pitty deixa muito claro quem é hoje e como chegou até aqui. "Nunca é tarde demais para voltar para o azul que só tem lá", recita, a artista, ao final de "Roda", canção na qual ela e Russo dividem os microfones para exaltar a força que têm os artistas vindos da Bahia: "Pode olhar atravessado (mas vê se muda) /
É o nosso jeito de expressar / Quando se entra na roda, pai / Ninguém quer parar", cantam. Ela também regravou "Motor", uma música da banda indie Maglore, também baiana, já cantada por Gal Costa. "O Rafa (Ramos, produtor do disco) sempre me disse que eu deveria regravar essa música", conta. A versão de Pitty deu cores vivas à faixa, ainda que a guitarra tenha um sabor nostálgico por conta do efeito vintage da guitarra que embala uma canção de saudade. https://youtu.be/2crBRcmZMTU (Motor) Voz grave e clássica da cultura baiana, Lazzo Matumbi participa "Noite Inteira", com murmúrios retumbantes ou cânticos ao fundo, enquanto Pitty faz uma de suas músicas mais políticas e atuais de Matriz. "Respeite a existência ou espere a resistência", canta, lindamente, Matumbi. Trouxe também Larissa Luz, outra artista importante do cenário nacional atual, vinda da Bahia, para "Sol Quadrado", música que encerra o disco. Nela, Larissa recita um texto escrito recentemente por Pitty, em uma música composta e inicialmente gravada em uma fita cassete demo no início dos anos 2000. Tudo a partir de uma fita cassete "Rafael me mostrou uma fita cassete com músicas demo que eu enviei para ele em 2001. Eu nem lembrava mais dela", conta Pitty. A K7 tinha as primeiras gravações de Pitty, gravadas no seu quarto, com Pitty ao violão, e enviada ao produtor Rafael Ramos. Foi ali o início da carreira da artista, antes dos estouros com os discos Admirável Chip Novo (2003), Anacrônico (2005) e Chiaroscuro (2009), sucessos lançados em sequência antes da chegada do projeto Agridoce, com Martin Mendonça, em 2011. Pitty, na turnê Matriz, também quis usar seu violão antigo, aquele mesmo com o qual gravou as primeiras canções, em um set acústico do seu show, algo que ela não costumava fazer nas turnês anteriores. "Sol Quadrado", música daquela K7 que sobreviveu ao tempo, é a música que encerra o disco e mostra uma Pitty muito atual e de 2019. Forte, de mente, de corpo e de discurso. "Tá na hora de questionar / Não vou fugir, mas da minha essência não vou me afastar", ela canta. Em uma curiosa contrapartida, o álbum abre com "Bicho Solto", faixa que mostra uma artista mais selvagem em suas intenções, é da safra mais recente. "Eu me domestiquei pra fazer parte do jogo / Mas não se engane, maluco / Continuo bicho solto".
Homenagem a Peu Única música não assinada por Pitty, sozinha ou em coautoria, em Matriz é "Para o Meu Grande Amor", música escrita por Peu Sousa, guitarrista da artista na gravação do seu primeiro disco, Admirável Chip Novo, na primeira versão da banda dela, e que deixou o grupo em 2005. Com um currículo que incluía ainda shows ao lado de artistas como Carlinhos Brown a Marcelo D2, Peu tirou a própria vida 2013. Depois disso, Pitty manteve contato com a esposa dele, Monique Ferrari, e com a filha Ananda, que também é artista. "Nos comunicamos [Pitty e Monique] por anos. Ela falava que queria fazer um disco tributo com algumas músicas que havia encontrado no computador dele. E eu falei: "vai me mandando as coisas, eu também quero fazer algo com a obra de Peu", conta Pitty. Rafael Ramos, de novo, disse a Pitty que ela deveria gravar essa música. "Encontrei com a filha dele, Ananda, e ela me disse: 'Sempre imaginei essa música com a sua voz", conta Pitty. "É mais um pedaço da Bahia 'lado B'." "A Ananda está seguindo o caminho musical e ela é uma menina incrível, com uma cabeça f***", elogia. Roqueira, sim, ainda bem Pitty faz o seu disco mais contundente, musicalmente falando, mas também com relação aos temas nos quais ela trabalha em Matriz. Ela experimenta novos ritmos e sabores, algo com o qual já havia flertado no trabalho anterior, SETEVIDAS, de 2015, na música "Serpente", mas agora ela parece mais leve para experimentar a injeção do eletrônico no rock dela. "Eu considero que esse é sim um disco de rock, principalmente em termos de texto, mas esteticamente também. Porque o que o rock propõe é virar tudo de cabeça para baixo, inventar coisas novas sempre. Esssa revolução, dando ela certo ou não. Não tô dizendo que isso necessariamente funciona, mas o ímpeto, o desejo e a intenção de fazer isso já é o que move." Ela debate, com isso, um aspecto do rock como gênero, desgastado muitas vezes por quem vive dentro dele. "Muitas vezes as pessoas mais xiitas dizem que o rock morreu, dizem o que é rock e o que não é. Eu digo que sou roqueira e tenho muito orgulho disso. Mas isso não me limita, não me impede de fazer outras experimentações, de tocar com outras pessoas. Eu não deixo de ser quem eu sou. Quem tem medo de perder a identidade é porque não está tão certo assim dela. Eu sou muito segura com relação a isso." https://youtu.be/DbIRvTW2PFA (Noite Inteira) Ela segue: "Nada me tira da condição de roqueira na essência. Na verdade, só me acrescenta. Acho que ficar na mesma coisa é o que pode promover uma determinada morte. Morte é não evoluir, é não transcender, é não passar de um estágio para o outro. Pitty, ao longo dos seus discos - sempre pesados, diga-se de passagem - mostra isso. "Eu acredito na transposição de sair, na evolução de sair. Eu penso em fazer parte dessa transposição. Quero estar nesse movimento porque ele é inerente à mim. Eu não conseguiria ficar parada." Agora, sim, ela pôde voltar à Bahia Todos os álbuns de Pitty são pessoais, porque é assim que ela cria, desde o início, quando gravou a já citada fita cassete e enviou-a para o produtor que se tornou seu escudeiro nesses anos todos. Mas há algo mais próximo da artista em Matriz. "Entendi o conceito do disco no meio para o final do ano passado, quando eu fui para Salvador e estava nessa onda de visitar a gênese das músicas, fazendo um pouco dessa análise de porque essa menina, dentro de um quarto em Salvador, pegou um violão e começou a tocar", ela explica. "E sobre toda aquela força que o punk rock trazia, de com três acordes poder tocar tudo. Era essa a história que eu queria contar no show Matriz, essa história que eu quis contar nesse disco também." "Porque o disco", ela diz, "veio a partir dessa análise de pensar em como cheguei até aqui, de pensar na Bahia que eu cresci, na Bahia de hoje, nos artistas que estão nesta cena da Bahia de hoje que é tão diferente da cena na qual eu cresci. Eu percebi que esse disco tinha Bahia para caramba." A partir desse momento, ao perceber o caminho que Matriz tomaria, Pitty explica que deixou as músicas seguirem seu curso. "Eu só respeitei e também fugi dos estereótipos. Eu abracei a parte de Bahia que estava se apresentando dentro daquele repertório." Dentro desse contexto, Matriz tem uma colaboração entre Pitty e Daniel Weskler, seu marido, chamada "Ninguém É de Ninguém" (https://youtu.be/DbIRvTW2PFA) - uma canção de amor bastante libertária -, mas também tem "Bahia Blues", uma faixa intensamente autobiográfica. "Cresci na Ladeira do Prata /
Andei no Campo da Pólvora / Rodei pela Barroquinha / O bar do pai, a boemia / A mãe secretária na sapataria / A reza da escola todo santo dia/ Medalha de santo pra boa menina", diz a estrofe inicial da música.
Já é possível perceber ali o apelo da canção, que vaga entre memórias afetivas que Pitty revisitou sobre a sua própria Bahia e sua história em Salvador. Mas, ao longo da música, ela confessa: "Eu vim de lá / Eu vim de lá, baby / Eu vim de lá mas não posso mais voltar". Quem diz esses versos, contudo, é outra Pitty, não a de 2019, porque a mesma canção "Bahia Blues" evolui, conforme as lembranças seguem se apresentando à Pitty tinha 20 e poucos anos quando deixou Salvador e veio para São Paulo tentar a vida como artista. Hoje, aos 41, crescida, mãe, artista estabelecida, ela se sente à vontade para resgatar sua trajetória. Ao fim de "Bahia Blues", ela celebra esse momento: A Pitty de hoje, com seu novo disco, nova vida, pronta para voltar. "Eu vim de lá, baby / Eu vim de lá … E agora eu posso voltar". Matriz é isso.


segunda-feira, 22 de abril de 2019

“É tolice medir o talento de um artista por suas posições políticas”












Vocalista do Capital Inicial há quase quatro décadas revela decepções com PT, Lula e Sergio Moro — a quem conheceu num show. Inspirado em Renato Russo, prega independência por música combativa


Rumo às quatro décadas de carreira, Dinho Ouro Preto, 54, confessa que demorou a acreditar que poderia viver da música. O vocalista do Capital Inicial, que emergiu na cena do rock no início dos anos 80, a era de ouro das bandas de Brasília, imaginava que, cedo ou tarde, seguiria o caminho traçado pela família. Tataraneto do Visconde de Ouro Preto, neto de ex-presidente da Academia Brasileira de Letras e filho de diplomata, renunciou à veia política para se tornar um dos roqueiros mais longevos do Brasil. Atribui à sorte, aliada ao estilo de vida saudável que adotou depois de parar de beber e usar drogas, a aparência jovial que disfarça sua idade. “Não há nada que me distinga da massa.”

Em seu estúdio, montado nos fundos de casa na zona oeste de São Paulo, conserva relíquias que entregam a rodagem da banda, como o primeiro álbum de vinil, gravado em 1986, e o disco de ouro do Acústico MTV, que vendeu mais de 2 milhões de cópias. É lá onde tem passado os dias preparando o novo projeto solo, um tributo ao rock brasileiro com versões de clássicos nacionais. Os shows com o Capital ainda ocupam parte da agenda, mas num ritmo bem menos frenético que a época de turnês incessantes pela estrada. Na entrevista ao EL PAÍS, Dinho defende que o rock precisa recuperar a verve combativa, crítica ao poder. Ele ainda fala sobre o encontro com o “fã” Sérgio Moro, diverge da postura do PT pós-eleição e diz respeitar os roqueiros que tomam partido. “É tolice medir o talento de um artista por suas posições políticas.”

Pergunta. O novo disco (Sonora) remete ao ‘Capital raiz’, mas sem abdicar dos hits. Vocês buscam o equilíbrio a partir do cultivo à essência?
Resposta. Fazer essas duas coisas é tirar o coelho da cartola. Toda banda tem sua personalidade. Respeitamos nossas origens, sem perder de vista o espaço para experimentar novas sonoridades, timbres e arranjos. Quem ouve o disco não diz que o Capital está irreconhecível, mas percebe que estamos diferentes. A melhor coisa do Sonora é ser surpreendente.
P. As parcerias com bandas mais jovens, como Far From Alaska, Fresno e Scalene, servem para estabelecer a conexão com o presente?
R. Como vesti a camisa por toda minha vida, hoje começo a me preocupar com o futuro do rock nacional. Quero passar a bandeira para a geração seguinte. Meu sonho é montar um festival itinerante. Seria um Lollapalooza brasileiro que viajaria por várias cidades. Vejo muito talento na garotada. Há várias bandas que me chamam a atenção. No entanto, falta ao rock um espírito maior de comunidade. Vemos isso com mais força no samba e na música sertaneja. Muitas vezes, o rock se pauta pela rivalidade.
P. O rock perdeu força diante da concorrência com outros gêneros?
R. Quando nós surgimos, havia ainda menos espaço para o rock. Tocávamos para 50 pessoas em Brasília. Pode ser uma questão de sazonalidade. Mas também a falta de um catalisador, um sujeito ou uma banda que consiga pegar o zeitgeist dessa época e verbalizar o que todos estão sentindo. O que houve, por exemplo, com Renato Russo e Cazuza.
P. Como fazer um rock popular sem desagradar aos fãs mais puritanos?
R. O Renato [Russo] me mostrou que é possível escrever boas letras em português para o rock. Antigamente havia certo preconceito, achavam que só era viável em inglês. Eu sempre tive na cabeça a necessidade de fazer um “rock popular brasileiro”. Queria que, quando as pessoas falassem sobre a música popular brasileira, tivessem que falar também sobre nós. O maior legado da nossa geração foi ter contribuído para popularizar o rock no Brasil.


“Confrontar o poder faz parte da essência do rock”
P. Naquela época, já sonhava ter sucesso com a música?
R. Nunca achei que eu fosse chegar aonde eu cheguei. Não tínhamos nenhuma pretensão profissional com a banda. Eu levava como curtição da adolescência. Imaginava que depois eu arrumaria um “emprego de verdade”. Sempre achei que o fim [do Capital] era iminente. Foi só lá pelos 40 anos que eu percebi que viveria do rock.
P. Qual foi o ponto de virada para o Capital Inicial?
R. O Capital experimentou o fracasso depois do sucesso. Nos separamos, mas soubemos aproveitar nossa segunda chance, aprendemos a lição. Paradoxalmente, o fundo do poço nos fez bem. Depois que a banda voltou, a gente não se deixou mais levar pelo entusiasmo dos bons momentos. É tudo efêmero. Eu voltei determinado a não repetir os erros do começo de carreira.
P. Os “primeiros erros”...
R. Exatamente. Essa música [Primeiros Erros], inclusive, é simbólica para o Capital. Ela teve tanto impacto porque fala de algo universal. Todo mundo gostaria de ter uma segunda chance para corrigir seus erros. Eu olhei pra trás e decidi me tornar obcecado pelos detalhes, a ser mais atencioso. A partir da reunião da banda, começamos a produzir um disco a cada dois anos. Em nenhum momento ficamos presos ao passado. Nós valorizamos nossa história, tocamos músicas antigas nos shows, mas estamos sempre de olho no projeto seguinte, em busca de uma reinvenção constante. O Capital não vive de nostalgia.

P. Em 2014, vocês lançaram o álbum Viva a Revolução, inspirados pelas Jornadas de Junho no ano anterior. Esperava que as manifestações de rua ganhassem contornos tão políticos a ponto de servir como termômetro da polarização no país?
R. Não esperava. O que me seduzia naquelas primeiras manifestações é que elas pareciam uma coisa meio anárquica, incendiária, contra tudo e contra todos. Aquilo me remeteu à época da juventude. Eu fui pra Paulista protestar. Teve um momento em que alguém levantou uma bandeira lá no meio e logo mandaram guardar. Não tinha liderança. Até hoje ninguém entendeu direito o que foi aquele movimento. Tenho a impressão de que o Brasil vive perenemente à iminência de uma explosão.
P. Sua família sempre esteve envolvida com a política. Como foi crescer nesse ambiente e experimentar a rebeldia da Turma da Colina, em Brasília?
R. Meu pai abriu a embaixada brasileira em Angola. Pegou malária, escorbuto, viveu Guerra Civil... Na volta, trouxe de recordação umas camisetas com foice e martelo do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola). Minha mãe tinha medo de eu ser preso por sair com elas na rua. Eu fazia mais por provocação. Nossa geração sempre teve o ímpeto de questionar o governo. Eu era criança nos anos de chumbo, pegamos a transição para a democracia. Nós achávamos que a música que a gente fazia era profundamente subversiva.
P. Chegou a se engajar em partidos?
R. Participei de reuniões do movimento secundarista, muito ligado ao Partido Comunista. Mas era de uma ortodoxia que me incomodava. Discussões em termos absolutos, profundamente dogmáticas. Pessoas da minha idade que pareciam comungar de uma certeza que até hoje eu não tenho. Vejo a dúvida como uma virtude, de aceitar o diálogo e não ser o dono da verdade. Sempre me incomodou a falta de liberdade de pensamento. Tem uma frase da música Baader-Meinhof Blues, do Renato [Russo], que eu acho genial: “Pra seu governo, o meu estado é independente”.

“Renato Russo teria se oposto ao Bolsonaro, mas não se alinharia ao PT”
P. Como Renato Russo enxergaria o momento do país se ainda estivesse vivo?
R. Ele estaria bastante incomodado. Certamente teria se oposto ao Bolsonaro, mas não se alinharia ao PT. Eu sempre o vi como uma liderança, um exemplo a ser seguido. Acredito muito em independência intelectual. Foi isso que aprendi com o Renato. Independência e disposição para o confronto ao poder. Não é papel do cidadão bajular políticos. Nosso papel é cobrar dessas pessoas.
P. Você fez campanha para algum candidato nas últimas eleições?
R. Eu me considero progressista, de centro-esquerda, mas tenho dificuldade de me associar incondicionalmente a programas de um partido. Sou independente. Já votei no Lula, mas parei de votar depois do mensalão. Passei a votar na Marina Silva, cheguei a fazer campanha pra ela duas vezes. Acredito na urgência da causa ambiental e concordo com as posições econômicas dela. No segundo turno da última eleição, eu votei no Haddad. Achei que ele estava propondo uma coalizão democrática, já que o extremista é o Bolsonaro. Fui levado a acreditar que o Haddad tinha dado um passo atrás no programa de governo para incluir em seu campo pessoas que não fossem necessariamente petistas, como eu. Mas, depois de levantar a bandeira da democracia, o PT entrou em contradição. Passaram a campanha inteira falando de democracia e mandam a Gleisi [Hoffman] pra posse do Maduro? A Venezuela vive uma ditadura. Se for uma ditadura de esquerda é aceitável? Eu me senti enganado.
“Falta ao rock um espírito maior de comunidade. Vemos isso com mais força no samba e na música sertaneja”
P. Apesar do apoio a Lula e Haddad, nunca se considerou petista?
R. Não sou petista e tenho várias reservas ao partido, mas também sou contra a demonização da obra do PT. A gestão Dilma foi um desastre, é verdade. Só que não podemos ignorar que houve inclusão social nos governos petistas, um legado importante. Para mim, o principal problema do país é a concentração de renda. A violência deriva dessa chaga social brasileira. Mas outra coisa que me incomodava no PT era o culto à personalidade, quase como uma seita. Algo típico de um caudilhismo latino-americano, que vai de Perón [ex-presidente da Argentina] a [Getúlio] Vargas, do Lula ao Bolsonaro, por incrível que pareça. Essa história de “mito”... Que porra é essa?
P. Um contrassenso desses tempos de negação da política e, ao mesmo tempo, idolatria a políticos...
R. Não há nada mais latino-americano do que isso. Estamos sempre esperando um salvador da pátria, uma pessoa iluminada. Confesso que eu também já me deixei carregar por esse culto. Quando o Lula foi eleito, eu falei: “agora vai”. Acreditei várias vezes, como na época que o Brasil se redemocratizou ou do Plano Real. Quando era adolescente, achava que, na idade que tenho hoje, o país já teria superado esses obstáculos.
P. Você já puxou coro contra políticos como Lula, Dilma, Aécio e Temer em shows do Capital, antes de tocar Que País é Esse. Pretende manter o tom crítico ao Governo Bolsonaro?
R. Sem dúvida. Discordo de muita coisa do Governo Bolsonaro, principalmente do núcleo ligado ao Olavo de Carvalho. Estou de acordo com parte da agenda do Paulo Guedes [ministro da Economia]. As contas precisam bater. Mas as reformas econômicas não são suficientes para incluir as dezenas de milhões de excluídos. Em relação ao Sérgio Moro, eu o conheci. Ele foi a um show do Capital em Curitiba, antes da condenação do Lula. Eu disse no palco que ele estava presente e o lugar veio abaixo, todo mundo aplaudiu. Depois conversamos no camarim. Eu via o trabalho dele na Lava Jato como apartidário. Tinha a impressão de que estavam investigando geral, do Lula ao Beto Richa, passando pela cúpula do MDB. Mas o Moro não deveria ter aceitado o cargo de ministro. Soou como se ele tivesse uma agenda em comum com o Bolsonaro.
P. Nesse cenário polarizado, fazer músicas com viés político representa um risco para o artista?
R. Sim. Abordamos temas políticos em nossos discos, mas, como nós não somos partidários nem monotemáticos, temos liberdade para tocar em qualquer assunto nas músicas [faz uma pausa]... Cara, eu tenho um histórico de incomodar a todos. Fui bastante xingado nas redes sociais durante as eleições, por militantes de vários lados. Minha família e até o pessoal da banda pediram pra eu parar de postar, porque viam as pessoas me xingando. Mas eu não me intimido. Que xinguem! Tem gente que ouve as músicas do Capital e votou no Bolsonaro. Porque a maioria das nossas mensagens poderia ser dirigida a qualquer político, a qualquer partido. Confrontar o poder, seja quem for, faz parte da essência do rock.

“O hip hop faz o que o rock fazia nos anos 80 e 90: bate de frente com o poder”
P. O rock ainda pode ser considerado revolucionário?
R. Hoje, o pessoal do hip hop é mais incisivo do que nós. Eles fazem o que rock fazia nos anos 80 e 90: batem de frente com o poder. A polarização do país chegou ao rock. De um lado, temos artistas mais engajados à esquerda, como Leoni, Edgard Scandurra e Tico Santa Cruz. Do outro, mais à direita, Lobão e Roger Moreira. O rock passou a ser um espelho da sociedade brasileira. Nos anos 80, era praticamente uma unanimidade que o problema do Brasil eram os militares. Depois, nos anos 90, havia quase um consenso de que era preciso promover justiça social. O mundo parecia mais simples no passado.
P. Há espaço para posições conservadoras dentro do rock?
R. Entendo que o rock precisa ser audaz e destemido, não pode ser submisso. Por isso, eu não me submeto a um partido ou ideologia. Sou livre pra criticar quem eu quiser. Mas eu acredito na democracia e levo isso ao pé da letra. Tenho que aceitar a diversidade de opiniões. As pessoas vão pegar no pé do Chico Buarque por ser petista? Discordo de muita coisa que ele diz. Para mim, por exemplo, Cuba e Venezuela são ditaduras. Mas ele continua sendo genial. Justiça seja feita, também reconheço o valor do Roger [Moreira] e do Lobão, mesmo discordando da opinião dos caras. É tolice medir o talento de um artista por suas posições políticas.
Capital Inicial surgiu após cisão do Aborto Elétrico, a primeira banda de Renato Russo. DIVULGAÇÃO
P. O Capital pode ser tão longevo quanto Rolling Stones, Kiss e Iron Maiden?
R. A parte mais difícil de uma banda é o entendimento entre quatro indivíduosque convivem há décadas. Uma hora você quer matar os caras [risos]. As pessoas tendem a glamorizar essa vida, mas o sacrifício é inerente à carreira. Perdi uma bela fase da infância dos meus filhos. Agora o Capital já é uma banda veterana. Estamos na trincheira pelo rock e não vamos desistir tão cedo.
P. Fãs da banda brincam sobre sua aparência, dizem que você não envelhece. Existe algo de rejuvenescedor na rotina de um roqueiro?
R. Estranho isso, né? Acho que é sorte [risos]. Vou fazer 55 anos. Mas eu parei com tudo. Parei de beber, fumar, usar drogas... E comecei a correr todos os dias. Não há nada que me distinga da massa.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Nasi no Provocações em 2014

Entre triângulos amorosos com seu parceiro de banda Edgard Scandurra, drogas e animosidades com seu pai e irmão, Provocações traz Nasi, o líder da banda Ira!

terça-feira, 2 de abril de 2019

O Alcoolismo Matou Raul Seixas aos Poucos

por Flávio Magalhães




Apesar da fama, Raul Seixas fazia uso constante de apenas duas drogas: cocaína e álcool. Nunca utilizou entorpecentes injetáveis, pois tinha aversão a agulhas. Tampouco usava maconha, pois não gostava dos efeitos.
A cocaína fazia parte do processo criativo. Raul acreditava que o uso do pó branco agilizava e intensificava os pensamentos, facilitando a composição de novas músicas. Segundo depoimentos de quem conviveu com o cantor, a droga se tornou constante na vida do roqueiro depois de Krig-Ha, Bandolo!, no auge da parceria com Paulo Coelho.
O álcool, contudo, era bem mais frequente. E começou precocemente, já nas festas do consulado norte-americano em Salvador, onde eram fartas as ofertas de Rock, bebidas e cigarros. Conforme crescia a fama do roqueiro, aumentava também a compulsão.

"Em todas as excursões que fiz através do Brasil junto com meu conjunto e empresários, devido à sempre ser bem-sucedido nas apresentações, voltava na euforia da vitória e isso era, por certo, um bom motivo para beber. Ainda no palco, cantando, não via a hora de terminar meus 45 minutos para “comemorar” no hotel com algumas fãs e colegas de trabalho. E era uma conversalhada danada, e como era de se esperar, entre fileiras e mais fileiras, entre esvaziar a geladeira e mandar o hotel repor as bebidas, eu atendia às expectativas dos fãs e de todo mundo, sendo como sempre o centro das atenções. Após a festa acabar e todos irem embora eu continuava bebendo e cheirando, sabendo que pela manhã tinha que pegar o avião e ir para o outro estado para outro show à noite. Bebia sozinho ou com alguém até o ponto de chegar a quebrar o hotel. Quebrava os espelhos da sala, cama, quebrava tudo e no outro dia a cidade que eu deixava estava com a notícia noticiando minha façanha."
A dependência do álcool é uma doença, além de ser um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento de diversas outras enfermidades. Entre elas, por exemplo, a inflamação do pâncreas, conhecida como pancreatite, que acometia Raul de maneira crônica. Em 1979, o cantor precisou passar por uma cirurgia para remover uma parte consideravelmente grande do órgão.
O alcoolismo interferiu na vida pessoal e profissional de Raul Seixas. Arruinou seus casamentos e atrapalhou diversos shows. Um de seus álbuns (Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!, de 1987) atrasou um ano em virtude das crises provocadas pela bebida. Kika Seixas, quarta companheira do roqueiro baiano, se viu obrigada a internar Raulzito algumas vezes, mesmo que compulsoriamente, com o objetivo de tentar tratar o vício em álcool.

"Às vezes minha música estava tocando numa padaria que não queria me servir, mas por causa da minha música que tocava na rádio era eu servido pelo cara que por certo achava que eu tinha alguma importância. Eu salvo pelo gongo. Ali naquele momento, com pose de artista, eu aproveitava e bebia enquanto o cara achava que eu era o Raul Seixas e não um bêbado…"O alcoolismo deu a Raul Seixas um final dramático. O vício chegou a tal ponto que o cantor começou a cheirar éter etílico, o que determinaria o fim de seu último relacionamento, com Lena Coutinho. O estômago já não aceitava mais bebidas destiladas, como a vodca, e ele vomitava toda vez que tentava ingerir algo do tipo. Por isso, consumia apenas cerveja, mas em grandes quantidades.

"Utilizei uma menina de onze anos, filha de Lena, para comprar éter na farmácia, pois já não vendiam para mim. Meu irmão, quatro anos mais novo do que eu, veio da Bahia para o Rio me visitar sabendo do meu problema. Eu sempre fui o seu herói e professor, ele sempre me respeitou. Hospedou-se lá em casa e me convidou para jantar fora. Minha ex-esposa não podia ir, pois tinha algo a fazer. Como eu não podia beber em sua frente, no restaurante, e a compulsão aumentava insuportavelmente, eu fui ao balcão e segredei ao barman para botar uma dose dupla de vodca na pia do banheiro. Sentei e conversei nervosamente com meu irmão dando tempo necessário para a trama. Pedi licença para ir ao banheiro, andei rápido, abri a porta e… O copo estava servido lá. Mas, no momento que pus as mãos em torno do copo, uma outra mão por detrás segurou a minha e tomou a bebida. Eu não ofereci resistência, e a bebida foi despejada na pia. Era meu irmão sério e determinado que me olhava fazendo-me esboçar um sorriso tímido e amarelo, bem infantil. Nunca me senti tão mal; foi uma experiência terrível."
Além da pancreatite, a diabetes e a hipertensão o acompanhavam, sendo necessário a injeção de insulina regularmente. Raul, porém, trocou a insulina pelo bar e perdeu a guerra para a pancreatite, sofrendo uma parada cardíaca fulminante em 21 de agosto de 1989.
(as citações deste texto são trechos de um relato escrito pelo próprio Raul Seixas em 31 de setembro de 1987 e publicado no livro O Baú do Raul, de Kika Seixas e Tárik de Souza)

eNTrevista Nasi: Dissolvendo a ira

"Personal traficante", ménages, interdição e recuperação. Nasi repassa altos e baixos de sua vida de filme.