quinta-feira, 22 de setembro de 2016

eNTrevista: Plebe Rude

Uma das bandas mais importantes de punk rock dos anos 80, atualmente a Plebe Rude vai muito bem, obrigado. Lançaram recentemente o sexto álbum de estúdio, Nação Daltônica, como de costume socialmente consciente e repleto de letras engajadas. A formação atual – Philippe Seabra (guitarra e voz), Clemente Nascimento (guitarra e voz), André X (baixo e vocais) e Marcelo Capucci (bateria) – finalmente trouxe a química perfeita, em todos os aspectos, segundo Seabra, principal frontman, compositor e “cartão de visitas” da banda.

Das três bandas mais importantes daquela geração de Brasília (Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude), a Plebe era, possivelmente, a que mais “prometia”, a mais séria e politizada. O fato de vocês manterem a coerência ao longo dos anos e não fazerem concessões impediu que a fama das outras duas bandas chegasse também à vocês?
Acho que é o preço que você paga por ser coerente e, justamente, por não fazer concessões, mas isso é uma decisão consciente. É muito fácil a gente pegar músicas da Legião e ficar tocando por aí. É muito mais fácil fazer covers, assumir que não compõe e trazer pessoas de fora pra escrever. No caso da Plebe é mais uma postura, pra gente é até uma coisa romântica, um pouco maior que a música: é mensagem, posicionamento. É uma coisa que a gente tem muito orgulho. Eu sempre falo que relevância é uma coisa, popularidade é outra. E se for assim, todos nós perdemos, porque o sertanejo tomou conta. O rock, no Brasil, jamais vai ser popular dessa maneira. E não é pra ser! É uma coisa de nicho. Tem banda que apela pra fazer o circuito de feira agropecuária. Pra gente, nunca foi a proposta. Tem pessoas da nossa geração cuja meta era virar popstar. Talvez eu seja um dos poucos cantores de bandas no Brasil bastante alheio a tudo isso. Eu moro em Brasília, tô afastado de tudo. Não que eu seja um militante, é que eu, particularmente, não gosto do showbizz, não gosto de politicagem, não gosto muito das pessoas do meio, tenho pouco amigo musico. É uma decisão consciente. Têm consequências, têm. Lógico! Mas a longevidade da banda a gente atribui a isso, ao respeito que as pessoas têm.
Recentemente três filmes (sobre a histórica Turma da Colina) foram feitos. E o que unem esses três filmes? O Renato (Russo) e a Plebe. Inclusive a Plebe aparece no Faroeste Caboclo (filme baseado na história da famosa música de mesmo nome), que eu, inclusive, fiz a trilha sonora. Faz um ano cravado que eu ganhei o premio de melhor trilha sonora original. É uma postura que vem com um preço. Eu vejo a Plebe como um contraponto dentro da música popular brasileira. Quando a gente começou, e começou a tocar nas rádios, tinha Renato Russo, tinha Arnaldo Antunes. Hoje a gente não vê isso. E eu acho uma grande tragédia! O nosso último disco, o Nação Daltônica, é o primeiro disco que eu fiz depois de ter virado pai e é impossível que eu não veja tudo através de prisma de pai agora. Uma coisa mais preocupada em termos de legado, coerência.
Falando no Nação Daltônica, ele foi feito com todo um cuidado, gravado no seu estúdio e produzido por você. É o disco que você mais gosta? 
Não sei, é diferente. Eu gosto muito do R ao Contrário, muito d’O Concreto Já Rachou. O Nação Daltônicatem um certo peso, tem uma música que eu toco sozinho, que é a musica em inglês, “(Go Ahead) Without Me”, mas foi um processo um pouco longo. Eu produzo outros artistas e, nesse meio tempo, tava conhecendo muita coisa interessante. Quando a gente começou o disco, o André gravou a parte do baixo e logo em seguida eu fui chamado pra fazer a trilha do Faroeste Caboclo, então tive que tirar seis meses de “licença” das gravações. Depois disso, a gente teve que trocar de empresário também, então demorou um pouquinho, mas é aquela coisa: tudo ao seu tempo. O Nação é um disco bem solto, a temática é quase como uma opera rock – não intencionado. Saiu com a preocupação sobre a imbecilização do Brasil e, como pai recente que sou, fico muito preocupado com a inarticulação dessa geração e dos artistas que estão surgindo, das coisas que estão virando referência.
Quando eu era pequeno, a programação infantil tinha Daniel Azulay, tinha Sitio do Picapau Amarelo. Aí quando foi a época da Xuxa, era só pra empurrar brinquedo e enfiar produto goela abaixo. Então isso teve uma consequência. O Joaquim Ferreira dos Santos (jornalista carioca) falou uma vez sobre o Big Brother e da tal inarticulação que aparece no programa. São pessoas que não conseguem nem conjugar uma frase corretamente. Aí você vê que essas pessoas estão simplesmente devolvendo tudo o que aprenderam através do mesmo meio. Como o Renato Russo falava: “Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês!” Você vê, nessas últimas manifestações, o que teve de jornalista citando Plebe, o que teve de cartazes de pessoas com letras da Plebe na rua! A gente fica, claro, super orgulhoso com isso, mas tem duas coisas que me irritam: uma, demorou trinta anos pras pessoas acordarem; duas, o que me irrita mais, as músicas ainda são relevantes e isso é um pouco triste, porque são temáticas fortes e você vê que talvez os problemas do Brasil não mudaram muito e que as manchetes são as mesmas há trinta anos.
Depois do lançamento de Plebe Rude (III), a banda demorou cinco anos para lançar Mais Raiva Do Que Medo, em 1993, e depois mais sete pra lançar o disco ao vivo Enquanto a Trégua Não Vem. A dissolução da formação original contribuiu para esses longos tempos de espera? 
Depois de 88, a formação original da banda tava se desentendendo, basicamente, por causa de drogas e intransigência, mas não da minha parte e nem do André (risos). Eu sou, inclusive, caretão. Foi difícil, o Jander (Bilaphra, ex-guitarra e voz) saiu, depois o Gutje (ex-baterista) saiu e isso é claro que reflete.  De 92 até o disco ao vivo (no ano 2000), a banda tinha acabado. Isso que as pessoas esquecem! A Plebe acabou! Titãs, Ira!, todos foram indo e vindo, com hiatos, altos e baixos, mas acabar mesmo, só a Plebe! Aí a gente voltou e gravou o disco ao vivo, eu tava morando em Nova York na época. A gente ia sair em turnê só na fase de divulgação, mas todos os problemas de drogas e intransigência dos outros integrantes voltaram. Então eu puxei o freio de mão, fui fazer outras coisas, o André foi fazer outras coisas, até a gente ter o insight de chamar o Clemente (Nascimento, também integrante da banda Inocentes).

Ainda existe a possibilidade do Jander e do Gutje se reunirem com a banda, mesmo que em ocasiões especiais?
Não, não tem clima. A gente já convidou o Jander várias vezes pra tocar com a Plebe no palco e ele não quer. Inclusive, ele não participou do documentário (Plebe Ignara contará a história da banda desde sua fundação até os dias de hoje). Ele foi convidado e não quis participar. A gente respeita a decisão, mas a vida continua. É engraçado, a Plebe vai fazer 35 anos e eu tô com a formação que eu sempre quis que a banda tivesse. A relação entre os membros era difícil na época da gravação do primeiro disco, então eu não tenho muitas boas lembranças. O auge da Plebe não foi um período muito feliz pra mim, porque eu não quero ser um babaca que usa o vício de drogas como medalha de honra. Eu nunca tive isso, mas muitos da nossa geração tem. Eu não caí nessa armadilha. Há mais pra vida do que o rock’n'roll, tanto que eu dei um tempo, saí do Brasil, fui aprender francês. Eu jogava vôlei, viajei pra Europa. Fui fazer coisas diferentes, coisas que a vida de rock n’roll não permite. Tudo é pessoal. No rock’n'roll, tudo é pessoal. É um casamento. Talvez o hiato entre as gravações seja porque a gente faz tudo de acordo com o nosso cronograma. Eu sou pai agora, sou produtor, tô muito envolvido em politica local e cultural de Brasília. Eu faço um evento, a cada 45 dias, onde tocam bandas ao vivo. É bacana, sou muito ativo nesse aspecto. O André teve selo, eu também, o Clemente tem o trabalho de produtor, tem o lance do Showlivre (programa musical pela internet referência desde o ano 2000) também. A gente faz as nossas coisas, mas a Plebe é a menina dos olhos.
Como anda a produção do documentário Plebe Ignara?
O documentário vai sair depois do carnaval de 2016, junto com a versão remasterizada d’O Concreto Já Rachou. O disco vai fazer trinta anos de lançamento e vai ser relançado junto com o documentário. O doc tá fantástico, a gente tá com acervo da TV Cultura, da TV Globo, do Jornal do Brasil, das pessoas que acompanhavam. É um material muito raro. O Gutje, ex-baterista da Plebe, fala, o Herbert (Vianna, líder dos Paralamas do Sucesso) fala, o Artur Dapieve (jornalista), eu, o André e o Clemente, claro, o Marcelo Capucci. É uma história engraçada, o pessoal não se leva tão a sério, mas é um pouco sofrido também. Eu nem gosto quando tentam comparar a gente com outras realidades, porque a Plebe é uma banda que jamais fez uma música de amor e nem dependeu de cover do Renato Russo pra ter repertório. E cá estamos, na ativa ainda! A gente vendeu mais de meio milhão de cópias, não é um número ruim! Não dá pra comparar com a Legião (risos), mas não é ruim pra postura que a gente adotou. O nosso ultimo DVD (Rachando Concreto: Ao Vivo em Brasília) foi indicado ao Grammy! A gente perdeu pro Caetano (Veloso), na categoria “Rock”. Vai entender! Uma coisa importante, que eu sempre falo pras bandas que eu produzo: tem que acreditar no que faz. Eu vejo alguns artistas, desde artistas emocore – se é que podem ser considerados artistas – que começam com uma postura e mudam, conforme for. Tipo uma banda que começa mais engraçadinha e aí resolve ficar séria. Você se põe numa situação muito difícil, porque quem acompanhava sua carreira engraçadinha não vai entender essa guinada que você deu e quem leva rock a sério não vai te aceitar. A gente tá vendo muitos artistas que flertaram com “conscientização” agora que o povo tá na rua, aí vem com bobagens tipo “música engajada de quem nunca teve engajamento”. Vai pra rua e grita: “Viva a Revolução!” Onde vocês estiveram nesses últimos trinta anos? Num país pegando fogo, aonde vocês estiveram? E a gente fala isso na música “Anos de Luta”. Dá pra ver muito disso também em blogueiros, sem citar nomes, mas blogueiros que encontraram uma segunda vocação e conseguem estender um pouco a carreira na internet com declarações polêmicas. É tudo entretenimento! Fala uma merda e sai amanhã no jornal, na internet. Na nossa época, polêmica de jornal só servia pra embrulhar peixe. Imagina hoje em dia, que é uma balburdia, um ruído? Isso que adorna a capa do Nação Daltônica, um ruído só. Todo esse ruído se traduz numa palavra só: entretenimento. Agora que é popular, falam: “pode sair agora, pode sair da toca, é seguro agora.” É uma pena isso, porque acabam nivelando tudo por baixo. O mercado tá todo nivelado por baixo.
Você mencionou o Herbert Vianna… apesar da música “Minha Renda” (canção que cita o vocalista dos Paralamas do Sucesso, do primeiro álbum da Plebe) ter sido escrita antes do encontro inicial com ele, podemos considerá-lo um padrinho da banda? Como é a relação da Plebe hoje em dia com ele? 
A gente acabou de gravar a participação dele no documentário. Sempre que a gente se encontra em algum show, é com um carinho enorme. Acho que uma vez a cada dois anos a gente acaba se esbarrando no palco e ele sempre faz questão de subir lá e ficar no canto assistindo o show inteiro. Ele sempre fala com carinho dos arranjos. É muito amigo, tem uma lembrança super viva da época. Eu tenho certeza que ele olha pra Plebe com um respeito enorme. Ele falava pra gente, naquela época que a gente brigava com gravadora, se recusava a fazer chacrinha e não sei o que: “Vocês são punks. Vocês são burros, mas vocês são punks.” Ele respeitava a parte sacana da banda, a parte coerente até a alma, a ponto de prejudicar mesmo, sabe? A Plebe nunca foi vaselina, sempre teve essa postura. Já ofereceram músicas do Cazuza pra gente, versões do Raul Seixas… NÃO! Eu, como produtor, também falo pras bandas: “Cara, a única maneira de você não cair em contradição é ser coerente!”. Você tem uma visão, uma mensagem, uma postura, é só ser fiel a isso! Eu sou um cara assim, sou um amigo fiel, um marido fiel e tenho essa preocupação. Até um pouco romântico, ingênuo nos dias de hoje, mas a gente nunca abaixou a cabeça pro mercado. A gente acredita no bem maior que a música.
A entrada do Clemente, em 2004, trouxe de volta o gás que faltava pra banda continuar? 
Trouxe. Eu e o André sempre tivemos uma puta garra, mas deu um gás, sim. E pra quem conhece os Inocentes, o Clemente é outra pessoa dentro da Plebe. É uma honra tocar com ele, a gente é super fã. Tem uma história muito boa, o Clemente foi literalmente o primeiro punk que a gente conheceu fora de Brasília. Ele foi buscar a gente na rodoviária em São Paulo há mais de trinta anos. A gente tava muito isolado em Brasília e tinha a nossa “internet”, que eram os malotes diplomáticos, onde a gente conseguia discos e livros quase em real time. A gente não sabia que tinham outas pessoas que curtiam esse som. E chegando em São Paulo, todo mundo, esse universo, as bandas, Azul 29, Ira! no começo, Voluntários da Pátria, Número 2, Zero, cara, foi um universo incrível pra gente! Eu tinha 15 anos de idade! 15 anos! E, apesar de ser um jovem muito impressionável, nunca cai nas armadilhas de drogas ou de alguma palhaçada. É bacana ter tido isso como vivência, essa adolescência. Com 13 anos de idade eu já abria show do Aborto Elétrico (primeira banda de Renato Russo, ao lado dos irmãos Fê e Flávio Lemos, integrantes do Capital Inicial), imagina? Tem história pra contar aí…

Pra finalizar, o que você anda ouvindo de bandas nacionais atualmente?
Hum… são tantas bandas que eu produzo, que se eu esquecer de alguma eles podem ficar meio zangados. Pode perguntar isso pro Clemente? (risos)
Obrigado pela entrevista, Philippe. Quer deixar uma última mensagem?
Eu cumpro o meu papel. Eu sou produtor, faço o festival Rock na Ciclovia, que é no mesmo exato local onde Plebe e Legião começaram a tocar também, em Brasilia. Trinta e três anos depois eu tô tentando fazer rolar de novo e evidenciando a música autoral. Como eu falei, é muito fácil tocar cover, temos que tomar o caminho mais difícil. Mas a gente paga o preço por isso.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Rolling Stone Brasil: Especial Renato Russo

"Renato ajudou a criar uma identidade para o rock do Brasil", diz Dado Villa-Lobos

Na reportagem de capa da edição 121, filho, amigos e companheiros de banda traçam um perfil do vocalista do Legião Urbana, que morreu há duas décadas.











por MAURO FERREIRA
13 de Set. de 2016 às 18:22

Em 23 de julho de 1983, Renato Russo era quase um desconhecido em sua cidade natal, Rio de Janeiro. Fato que mudaria naquela noite, quando um show feito pelo Legião Urbana no projeto Rock Voador deixou alucinada a plateia que foi ao Circo Voador para ver Lobão, Capital Inicial e a então novata banda formada por Renato em Brasília no ano anterior. Quando a agitadora cultural Maria Juçá, produtora do projeto, foi ao camarim cumprimentar o Legião, se surpreendeu ao encontrar Renato quieto, recolhido, quase deprimido. Mesmo assim, rasgou elogios à performance dele no palco. “Ele me escutou calado e, muito sério, se voltou para mim e disse: ‘Eu não mereço isso. Esse carinho todo do público é muito maior do que o que eu ofereço a ele. Eu esperei muito por esse momento, por esse show. Chamei todos os meus amigos, mas agora não quero falar com ninguém’”, conta Maria. “Com um olhar deprimido, Renato me deu um abraço e, naquela noite, não quis nada além de se recolher à solidão dele.”
O episódio deu a pista do que seria dali em diante o comportamento controvertido e inusitado de Renato Manfredini Jr., cantor, compositor, músico e grande ícone do rock brasileiro. “Renato era do signo de Áries e tinha reações inesperadas como as de uma criança”, reitera Marcelo Bonfá, baterista do Legião Urbana e parceiro de Renato em canções há anos enraizadas no imaginário nacional.
Nascido na madrugada de 27 de março de 1960, em uma abastada clínica do Rio de Janeiro, Renato Russo morreu na primeira hora de outra madrugada, a de 11 de outubro de 1996, na mesma cidade – que, a essa altura, já sabia muito bem quem era o artista que se tornou espécie de messias pop da juventude dos anos 1980 e 1990.



Vítima de complicações decorrentes da contaminação pelo vírus da aids, Renato viveu apenas 36 anos. Tempo suficiente para deixar obra imortal, que será revitalizada a partir de outubro. Um álbum com regravações de músicas do astro por bandas da cena independente brasileira, reedições de discos, lançamentos de livros, montagem de peça escrita pelo artista e uma megaexposição, prevista para 2017, vão reavivar a obra e a personalidade de Renato 20 anos após a despedida do poeta.
A obra de Renato Russo permanece forte como o mito alimentado em torno da figura dele, um homem de temperamento ansioso e humores oscilantes. Mas ele era também, e sobretudo, um ser humano generoso, inteligente ao extremo e com sensibilidade à flor da pele. “Para mim, era como se o Renato fosse um irmão mais velho”, caracteriza Dado Villa-Lobos, guitarrista do Legião Urbana. “Ele era agregador no sentido de realizar ideias em comunidade. Renato era inteligente, perspicaz, um grande sedutor. As ideias e o discurso dele eram incríveis. Ele era catalisador, fazia com que as pessoas pensassem e produzissem mais.” Dado tinha 15 anos quando sentiu o sangue correr mais forte nas veias ao ver e ouvir, em 1980, Renato tocar guitarra em um show do Aborto Elétrico, banda punk de Brasília formada em 1978. Dado não poderia imaginar que, em março de 1983, seria convidado a ocupar o posto do guitarrista Ico Ouro Preto no Legião Urbana, a banda criada por Renato em 1982 após a dissolução do Aborto Elétrico (e depois de uma breve fase em que Renato se apresentou sozinho ao violão e com o epíteto de Trovador Solitário).
Embora constantemente o rondasse, a solidão nem sempre fez parte do cotidiano do poeta. Filho de Renato, Giuliano Manfredini lembra com saudade e emoção dos períodos lúdicos vividos com o pai no apartamento do bairro carioca de Ipanema que concentrava o acervo pessoal do artista, atualmente em processo de restauração pelo MIS – Museu da Imagem e do Som de São Paulo. “O período em que morei com meu pai neste apartamento foia fase mais feliz da minha vida”, diz Giuliano, na sala do local, repleto de discos, livros e quadros. “Eu passava brincando por esta sala, desenhando, enquanto o meu pai compunha. Ele estava sempre com um papel e uma caneta na mão. Era um cara muito família, brincava comigo de cavalinho, de guerra de travesseiro, e lia muito pra mim. Também tenho várias memórias dele me levando para ver peças de teatro. Tinha esse lado paizão. Ao mesmo tempo, também era um pai tradicional, daquele que diz ‘isso não pode’. Ele sempre foi e é muito presente na minha vida. Eu acordo pensando nele, durmo pensando nele. Meu pai é o meu herói.”

Renato também tinha os próprios heróis. Os Beatles e os Rolling Stones, entre eles. Foi um garoto que amou as duas bandas inglesas na adolescência vivida nos anos 1970.
Crítico de Crítico de rock que conviveu com o artista nos bastidores de shows e gravadoras, o jornalista carioca Jamari França lembra o entusiasmo de Renato com o universo pop dos anos 1960, a ponto de ele ter juntado, ao vivo, “Gimme Shelter”, clássico dos Rolling Stones de 1969, com “Ainda É Cedo”, música do primeiro álbum do Legião Urbana, lançado em janeiro de 1985, sem alarde, no mês em que todos os olhos da imprensa musical estavam voltados para a primeira e histórica edição do festival Rock in Rio. “Renato tinha um fascínio grande pelo rock dos anos 1960 e 1970. Uma vez conversamos sobre isso no Noites Cariocas [extinta casa de shows situada no Morro da Urca, no Rio]. Ele me perguntou sobre a sensação de ter comprado aquele e outros discos na época em que saíram, quando a linguagem do rock ainda estava sendo escrita”, recorda França. “Renato dizia que os anos 1980, no Brasil, eram na verdade os anos 1960. Por isso, escreveu ‘Bem-vindos aos anos 70’ no encarte de V, o primeiro álbum lançado pelo Legião na década de 1990. No show daquela noite, ele me dedicou ‘Ainda É Cedo’ e falou que eu tinha comprado o álbum Let It Bleed [lançado pelos Stones em 1969] quando o disco saiu.”
Renato Russo, porém, nem sempre era afetuoso. “Ele era alegre, divertido, intenso, sensível e contestador. Mas também era perturbador. O telefone tocava de modo diferente quando ele ligava para falar sobre alguma coisa”, afirma Marcelo Bonfá. A perturbação poderia se manifestar no corte dos pulsos, como Renato fez em 1984, ou em um ataque de cólera como o presenciado pela produtora do Circo Voador, Maria Juçá, quando ela sugeriu que o Legião Urbana migrasse de Brasília para o Rio de Janeiro. A cidade concentrava as matrizes das grandes gravadoras e viver nela baratearia os custos das apresentações da banda no Circo Voador, palco então decisivo para a consolidação da carreira de qualquer grupo de rock no Rio e, por extensão, no Brasil. “Ele explodiu, dizendo que eu queria transformar o Legião em uma peça de alcatra, exposta em um açougue para ser consumida por um bando de famigerados. E que ele jamais permitiria isso, que não viria morar no Rio de jeito nenhum. Bem, eu fiquei puta e devolvi, dizendo: ‘Eu não quero te transformar numa peça de alcatra – você já é uma peça de alcatra e todos irão te consumir’.”

Maria foi profética: em agosto de 1985, o Legião acabou se mudando para o Rio de Janeiro. Nessa época, a banda já estava sendo “consumida” por milhares de ouvintes e compradores de discos. Após meses de quase nenhum burburinho em sua volta, o álbum Legião Urbana decolou espontaneamente, a reboque do estouro de “Será”, primeiro dos hits radiofônicos do repertório do disco. Na sequência, a gravação e a edição em 1986 do álbum Dois, de tom mais contemplativo, ampliaram o alcance – o número de hits cresceu e transformou o Legião Urbana não em uma peça de alcatra mas no filé-mignon da gravadora EMI-Odeon. Tanto que a companhia ignorou a crise de criatividade de Renato Russo como compositor e pressionou a banda a fazer o terceiro álbum em 1987. O impasse foi resolvido com a decisão de gravar o repertório do seminal Aborto Elétrico no álbum que veio a ser intitulado Que País É Este? 1978-1987. A faixa-título e “Faroeste Caboclo” foram feixes de pólvora que atearam fogo à relação já passional do Legião com o público em um momento em que o Brasil atravessava um turbulento processo de redemocratização e tentava domar o dragão da inflação.
“Renato tinha uma personalidade complexa, que, associada aos acontecimentos políticos e sociais da época, o tornou uma das pessoas mais emblemáticas da história da redemocratização do Brasil”, interpreta Marcelo Bonfá. Importância que, no entender do filho, Giuliano, não se dissolveu ao longo destes 20 anos sem Renato. “A obra dele continua atual. Quanto mais o tempo passa, mais ela vai ficando atual. Tanto que a música ‘Que País É Este?’, composta por meu pai quando ele tinha 15 anos, virou um hino de indignação nas recentes manifestações políticas do país”, argumenta Giuliano. “Renato entendeu que não podia passar a vida em vão e ajudou a criar uma identidade para o rock do Brasil”, completa Dado Villa-Lobos.
Você lê mais histórias sobre Renato Russo na Rolling Stone Brasil 121, que estará nas bancas a partir de 14 de setembro de 2016.