“Eu quis mudar / E isso implicava em deixar para trás / Meu chão, meu conforto, o certo, a paz / Eu fui a procura de mais". Ainda que existam diferentes formas de interpretar e encaixar a poesia libertadora de Quis Mudar, terceira faixa do primeiro álbum em carreira solo de Tim Bernardes, Recomeçar (2017, Risco), não há como negar que sobrevive ali um perfeito resumo do novo posicionamento do cantor e compositor paulistano. Uma ruptura sutil, como um breve distanciamento do material que vem sendo explorado pelo artista na curta discografia d’O Terno, projeto em que atua como guitarrista/vocalista desde o início da presente década. Para além de possíveis burburinhos, o trabalho como integrante da banda paulistana segue sem interrupções, ainda embalado pelo maduro acabamento do recente Melhor Do Que Parece (2016), terceiro registro de inéditas do grupo. Trata-se de apenas de uma curva leve na carreira de Bernardes, como um convite a explorar as angústias e conflitos particulares do cantor, dificilmente externadas em um projeto coletivo. Versos dotados de uma poesia grandiosa, mesmo na delicada tapeçaria instrumental que amarra cada composição. Dotado de um lirismo agridoce, Recomeçar joga com a dor e o acolhimento dos versos a todo instante, costurando tormentos intimistas, declarações de amor e conflitos que bagunçam a mente de Bernardes.
Uma obra de essência particular, como um abrigo poético, mas que se conecta diretamente ao ouvinte logo em uma primeira audição. Entre arranjos orquestrais, sempre precisos, a passagem direta para um mundo de sentimentos confessos, postura reforçada logo na inaugural Talvez (“Eu não quis ouvir / Fui me fechar / Pra tudo que eu / Não conheço“), mas que cresce à medida que avançamos pelo registro.
Próximo e ao mesmo tempo distante do material que vem produzido como integrante d’O Terno, Recomeçar trata da melancolia de Bernardes (e do próprio ouvinte) com uma honestidade rara. Difícil não desmoronar ao bater de frente com faixas como Não (“Eu acredito que não foi por mal / Mas que fez muito mal pra mim / Fez mesmo“) e, principalmente, a sorumbática Ela (“Quase como que anestesiada / Vai deixando a vida carregar / Ela sentiu mais do que aguentava / Não quer sentir nada nunca mais“). Composições sempre econômicas na construção dos versos, porém, ricas em significado.
Mesmo quando foge da temática sentimental e observa o próprio entorno, Bernardes mantém firme o conceito melancólico do registro. Exemplo disso está na sóbria Tanto Faz, quarta faixa do álbum. Entre ambientações acústicas, a voz do músico explode: “Tanto faz / Quem saiu, quem entrou / Tanto faz / De que lado ficou / Tanto faz / Eu vou sempre perder“. Versos que passeiam pelo atual cenário político brasileiro de forma descrente, como uma extensão do tom pessimista que marca os instantes finais do último registro de inéditas d’O Terno. Nada que se compare ao cuidado do artista em As Histórias do Cinema. Uma composição marcada pela descrição dos versos e delicado jogo entre a realidade dos filmes e os personagens interpretados diariamente pelas pessoas (“E a vida parece mentira / Por que não quer acreditar / Que as histórias do cinema / É que não podem ser reais“).
Curioso notar como toda essa seleção de versos talvez passasse despercebida se não fosse pelo elaborado arranjos de cordas que cobre toda a superfície do registro. São quase cinco décadas de referências organizadas em um mesmo ambiente instrumental, como se a obra Scott Walker, The Beach Boys e Roy Orbinson encontrasse com o trabalho de nomes recentes do folk norte-americano, caso de Fleet Foxes e Sufjan Stevens. Prova disso está na autointitulada faixa de encerramento do disco, composição capaz de jogar com o uso de pequenos respiros e atos orquestrais que antecedem a explosão dos versos, trazendo flexibilidade das palavras um misto de fechamento e regresso ao início da obra (“O que começa terá seu final / E isso é normal … A dor do fim vem pra purificar / Recomeçar“).
Personagem central da própria obra, Bernardes não apenas assume a composição dos versos, traduzindo as próprias experiências e sentimentos de forma sempre expositiva, honesta, como detalha cada fragmento instrumental, arranjo de cordas, sopros e vozes que ocupam as brechas do registro. Um exercício particular, porém, completo pela breve interferência de nomes como Gui Jesus Toledo, responsável pela gravação do álbum, e todo o time de músicos que cercam o paulistano do primeiro ao último instante da obra, fazendo de Recomeçar um imenso e precioso labirinto de sensações.
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