Por Luiz Carlos Ferreira
Era 1966. O Brasil vivia o segundo ano sob domínio dos militares. Nas grandes capitais, estudantes secundaristas começavam a ocupar as ruas em protesto contra o novo sistema antidemocrático de governo. No cinema, Leila Diniz era consagrada na comédia romântica “Todas as Mulheres do Mundo”, de Domingos de Oliveira. E o escritor baiano Jorge Amado lançava o romance “Dona Flor e seus dois maridos”. Era o início da era dos grandes festivais televisivos de música popular brasileira, que projetaram Tom Zé, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Chico Buarque, entre outros.
A bossa nova, criada havia uma década no Rio, ainda ecoava entre os jovens da classe média. Mas a atração musical de maior audiência era o dominical “Jovem Guarda”, liderado pelo trio Wanderléa, Roberto Carlos e Erasmo Carlos, na TV Record, onde a guitarra elétrica se popularizou no país. O instrumento, até então limitado à Jovem Guarda, já era experimentado em outros ritmos nas mãos de um talentoso e irreverente grupo de jovens paulistanos chamado Mutantes, que se tornou um dos principais agentes transformadores da música brasileira naquela segunda metade dos anos 60.
Ainda em 1966, no dia 14 de novembro – 50 anos completados hoje -, a
Folha foi o primeiro jornal de grande circulação a fazer uma reportagem com o
trio, que era formado por Sérgio Dias, 16, seu irmão Arnaldo Baptista e a amiga
Rita Lee, ambos com 18 anos.
Sérgio, vocalista e guitarrista, havia abandonado os estudos para se
dedicar integralmente à música. Arnaldo (vocais, teclados e baixo) era o
principal arranjador do grupo. E Rita, além de percussionista e principal
vocalista, tocava harpa, flauta e berimbau. Nas horas vagas, dava aulas de
inglês, francês, violão e bateria.
Em meio a todo o turbilhão político e cultural da época e com poucas
similaridades comportamentais e estéticas com o tradicional, os Mutantes
apareceram pela primeira vez na TV em 15 de outubro, na estreia do musical “O
Pequeno Mundo de Ronnie Von”, exibido aos domingos pela TV Record.
O nome do trio foi proposto pelo então príncipe da Jovem Guarda, Ronnie
Von, que, admirado com o livro de ficção científica “O Império dos Mutantes”,
do francês Stefan Wul, escolheu o dia da estreia do programa para o batismo
oficial do conjunto.
Na atração, os Mutantes já se mostravam um tanto inovadores e originais
ao tocarem com duas guitarras a Marcha Turca, de Mozart. Em outra edição do
programa, no entanto, foram impedidos pelos diretores de executar a Ave Maria,
de Schumann, conforme afirmaram à reportagem da Folha na época.
“O programa dele, infelizmente, começou a ficar igual aos outros. O
Ronnie não manda mais nada, faz o que os diretores querem. Ele pretendia fazer
um programa com música renascentista, bossa nova e tudo o mais, mas não deu
certo”, afirmou Rita Lee ao jornal.
Porta-voz dos Mutantes naquela primeira entrevista, Rita definiu o grupo
com a seguinte frase: “Ele vem de outro planeta para tomar conta do mundo. É
moço, inteligente e vai longe, porque encontrou o mundo cheio de mediocridade”.
No programa de Ronnie Von, a incompatibilidade de ideias com a direção,
levou o trio a deixar a atração no início de 67. Depois foram convidados pela
TV Bandeirantes para o programa “Quadrado e Redondo”, de Sérgio Galvão.
A ORIGEM
A história da banda, entretanto, havia começado dois anos antes, em
1964, com a criação do “Six Sided Rockers”, depois denominados “O’Seis”. O
grupo se originou da junção de integrantes de duas bandas formadas por
adolescentes de São Paulo: o quinteto de rock Wooden Faces, dos irmãos Cláudio,
Arnaldo e o caçula Sérgio Dias –com os amigos Raphael Villard e Luiz Pastura–,
e o quarteto feminino de folk Teenage Singers, de Rita Lee, Suely Chagas, Jean
e Beatrice.
No “O’Seis” faziam parte Rita, Suely, Arnaldo, Sérgio, Raphael e Pastura.
Cláudio, irmão mais velho de Sérgio e Arnaldo, passou a se dedicar à fabricação
de instrumentos para a banda. Suely, de mudança para os EUA, foi substituída
pela vocalista Mogguy, namorada de Raphael. Com essa formação, gravaram um
compacto simples com as músicas “Suicidas” e “Apocalipse”, com pouca
repercussão na mídia.
À Folha Rita Lee contou que Mogguy era “briguenta” e que um dia, após
desentendimentos com os colegas, abandonou o sexteto. Raphael, seu namorado,
acompanhou a amada, e Pastura, grande amigo de Villard, também seguiu o casal,
restando então Rita, Arnaldo e Sérgio. Antes de se tornarem Mutantes, foram
conhecidos ainda pelos nomes “O Konjunto” e “Os Bruxos”.
O SUCESSO
A popularização dos Mutantes, no entanto, ocorreu em outubro de 1967,
quando, ao lado de Gilberto Gil e do maestro Rogério Duprat, protagonizaram o
início de uma abertura sonora na música brasileira ao apresentarem “Domingo no
Parque”, no 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Era a
primeira vez que a guitarra era introduzida na MPB. Era também uma quebra de
paradigmas, amplificada pela adesão de Caetano Veloso, que, acompanhado pelos
roqueiros argentinos dos Beat Boys, executou no mesmo festival a eletrificada
“Alegria alegria”.
Três meses antes, com o slogan “Defender o que é nosso”, uma passeata contra o instrumento tinha sido realizada por vários artistas nas ruas do centro de São Paulo, o que depois foi reconhecido como um grande equívoco por parte de muitos dos manifestantes.
Três meses antes, com o slogan “Defender o que é nosso”, uma passeata contra o instrumento tinha sido realizada por vários artistas nas ruas do centro de São Paulo, o que depois foi reconhecido como um grande equívoco por parte de muitos dos manifestantes.
Outro fato marcante da banda ocorreu em 15 de setembro de 1968, na
edição paulista do 3° Festival Internacional da Canção, promovido pela Rede
Globo, quando os Mutantes apresentaram com Caetano Veloso a música “É proibido
proibir”. Naquele dia foram recebidos sob intensa vaia pela plateia, com
direito a um antológico discurso de Caetano para o público.
No mesmo ano, o trio gravou o seu primeiro LP, intitulado “Os Mutantes”,
e participou do disco manifesto do movimento tropicalista “Tropicália ou panis
et circenses”, que evidenciaria a relevância musical dos jovens artistas.
RACHA
Em 1969, além de incorporar a entrada do baixista Liminha e do baterista
Dinho, a banda passou a lançar discos em série, como “Mutantes” (1969),
“A Divina Comédia ou Ando Meio desligado” (1970) –ano em que os Mutantes
experimentaram LSD–, Jardim Elétrico (1971) e “Mutantes e seus cometas no país
dos baurets” (1972), o último com a participação de Rita Lee, que deixou o trio
por desentendimentos sonoros associados à dramática separação de Arnaldo, com
quem ficou casada entre 68 e 72.
Outro trabalho de grande importância na discografia da banda é
“Tecnicolor”, gravado em 1970 em Paris, quando os Mutantes excursionavam pela
cidade francesa. Esquecido, o disco foi lançado 30 anos depois, em 2000, pela
Universal.
O ano de 1973 foi marcado pela saída de Arnaldo Baptista e pela adesão dos Mutantes ao rock progressivo com a gravação de “O A e o Z”, lançado apenas em 1992, por questões de apelo comercial por parte da PolyGran. A partir daí o grupo sofreu ainda outras duas mudanças em sua formação até o derradeiro “Tudo foi feito pelo sol” (1974), em compacto e LP ao vivo. Quatro anos depois, em 1978, Sérgio Dias decreta o fim do grupo.
O ano de 1973 foi marcado pela saída de Arnaldo Baptista e pela adesão dos Mutantes ao rock progressivo com a gravação de “O A e o Z”, lançado apenas em 1992, por questões de apelo comercial por parte da PolyGran. A partir daí o grupo sofreu ainda outras duas mudanças em sua formação até o derradeiro “Tudo foi feito pelo sol” (1974), em compacto e LP ao vivo. Quatro anos depois, em 1978, Sérgio Dias decreta o fim do grupo.
O reconhecimento internacional veio no anos 90, quando foram
redescobertos por Kurt Cobain (Nirvana), Sean Lennon, Beck e David Byrne,
fundador do Talking Heads, que em 1999 homenageou os Mutantes com o lançamento
nos EUA da coletânea “Everyrhing Is Possible”, pelo próprio selo, o Luaka Bop.
O RESGATE
Em dezembro de 95 o jornalista e então crítico cultural da Folha, Carlos
Calado, lançou a primeira grande biografia da banda, “A Divina Comédia dos
Mutantes”, pela editora 34. No ano seguinte, os Mutantes foram mais uma vez
homenageados com o disco de covers “Triângulo sem Bermudas”, que contou com as
participações de Jorge Mautner, Gilberto Gil, Arnaldo Antunes, Barão Vermelho e
outros.
No ano de 2006, quase três décadas após o fim da banda e sem a presença de Rita
Lee e do baixista Liminha, que alegaram estar com agendas lotadas, os Mutantes
-com Zélia Duncan como convidada- se reúnem para uma calorosa turnê por Europa,
EUA, Ásia e Austrália.
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